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Colunistas do Lepadia

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VIOLÊNCIA, RELIGIÃO E FRONTEIRAS INTANGÍVEIS

Adria Fabricio

Graduada em Direito pela UFMS e Mestranda em Direito Internacional pela UERJ. Profissional Humanitária, membro e facilitadora do Centre of Competence on Humanitarian Negotiation (CCHN) e membro da Equipe de Resposta Nacional da Cruz Vermelha Brasileira. Pesquisadora em Direito Internacional Humanitário (DIH) e em Direito Internacional das Catástrofes no LEPADIA/UFRJ e Professora da linha de DIH no GPDI/UFRJ.

E-mail: adriasfs@outlook.com

A coexistência pacífica das religiões e sua conexão relacionada com a justificativa para a violência tem efetivamente assombrado nossa realidade próxima. Apesar da colisão de valores, a verdade é que é possível relacionar discursos religiosos e suas lógicas de permissibilidade ou reprovação à violência. Prejuízos à coesão social, fronteiras invisíveis e a teoria da guerra justa são alguns dos assuntos correlatos que podem ser debatidos em torno da temática.

 

A violência é comumente um dos principais meios utilizados para o cumprimento de várias agendas, assim como as religiões são comumente os principais impulsionadores de teorias radicais de absolvição da humanidade através do terror. Nesse sentido, populações inteiras formam coalizões, grupos, coletividades que se conformam, dissolvem e reconformam em dinâmicas próprias que buscam desde a submissão de outros povos, até evitar a completa aniquilação, tamanha a sua pluralidade.

 

As convenções humanitárias são comumente ignoradas perante as lógicas apresentadas, de modo que regras e normas tornam-se irrelevantes em nome da redenção da humanidade. A radicalização dos conceitos, assim como de seus meios de ação, é alavancada mediante brutalidade e fundamentada na suposta correção, na expurgação, no massacre.

 

As guerras santas travadas sob os auspícios das justificativas injustificáveis pretendiam e continuam a pretender a dominação e o sacrifício através da concretização de objetivos por vezes políticos. Entretanto, nenhuma alma jamais foi salva pelo ódio; nenhuma verdade jamais foi provada pela violência; nenhuma redenção jamais foi atingida pela guerra santa. Nenhuma religião conquistou a admiração do mundo por sua capacidade de infligir sofrimento a seus inimigos.

 

Apesar e independentemente das crenças sinceras e desinteressadas, a promoção da violência como meio nada mais é do que uma caricatura da fé, que enquanto permanece incompreendida, inflige sofrimento à humanidade, ao invés de suplantar suas funções mais frequentemente partilhadas: suas capacidades de curar, de sublimar traumas, de honrar os falecidos e de expressar as belezas e os mistérios da vida.

 

Os fundamentos da agressividade informam a aptidão humana em destruir-se a si e aos demais, sendo a sua eficácia, nesse aspecto, inquestionável, desesperadora. A crueldade, por sua vez, provou-se constante, quase como um indicativo de desesperança perante o fracasso em fundamentar a humanidade na preservação da existência digna.

 

E, por mais que constitua tamanho indício de derrota, ainda é possível enxergar nas fronteiras intangíveis entre religião, cultura, etnia e identidade, as nebulosas faces de princípios de preservação, compaixão e não-violência. Somos constituídos de imprecisões e partes que por vezes não se encaixam. A coerência, por vezes, não significará perfeita coesão, mas o caos que nos conforma é derivado das nossas decisões e da nossa essência enigmática, ininteligível.

 

 

Faz-se essencial, portanto, manter em mente as similaridades que interconectam as várias manifestações de fé, compreensões sagradas capazes de construir pontes por meio do compartilhamento de arquétipos, símbolos e mitos que se assemelham. Particularmente, quando se trata de valores que se identificam entre si, em sua tentativa valorosa de provar que a substância humana também é composta por uma porção apaziguadora, que pacifica, que reconcilia.

 

O fortalecimento da liberdade religiosa, assim como o diálogo entre as várias religiões possuem papéis essenciais nesse debate, considerando as fronteiras conhecidas, mas particularmente abarcando as barreiras que não podem ser vistas e que, por vezes, são incompreendidas. A perspectiva voltada para a absorção dos textos sagrados com generosidade em sua diversidade tão característica e a formação para a construção de laços e contra a propagação do ódio.

 

Métodos pacíficos de resolução de conflitos e a convergência para o respeito mútuo a fim de assegurar a existência e permanência do outro em sua fé indica o caminho para a coabitação, sobre o mundo, de diversas identidades espirituais. O objetivo primordial seria comportar as divergências de modo que estas não se tornassem condutores para ciclos repetitivos de violência, cada vez mais difíceis de aplacar.

 

Esta tendência à agressividade, detectada facilmente em cada sujeito e coletividade reconhecida constitui fator central de perturbação, impondo esforços contrários constantes a esse movimento; fundamentados, claramente, na sua contraposição. Nesse sentido, nos encontramos frequentemente ameaçados à ruína diante do espetáculo de guerras, perseguições, cortes de hereges, assim como o da profanação, o esmagamento das demais identidades espirituais, a destruição de templos, imagens, escrituras e locais sagrados que não correspondem às concepções ímpares do carnífice.

 

A violência não pode ser interpretada como uma consequência necessária. O termo ‘violência’ pertence à retórica revolucionária da conversão, da transformação, do salto e do radical e as suas dinâmicas semânticas ilustradas nos textos sagrados das religiões, inflama quando utilizadas com fins escusos, geralmente conectados a intentos políticos que se valem de motivos religiosos de violência para conquistar.

A multivalência dos discursos deve ser coordenada através da compreensão da defesa de direitos enquanto obrigação coerente com a impraticabilidade da resolução de conflitos pela força das armas. Uma vez que as comunidades políticas têm direito à existência, ao progresso, à aquisição dos recursos necessários ao seu desenvolvimento, à defesa da sua existência e dignidade, estas permanecem obrigadas, em igualdade de condições, a salvaguardar cada um desses direitos também para as demais coletividades humanas, abstendo-se de atos prejudicial.

 

As comunidades políticas não podem, portanto, desenvolverem-se legitimamente causando danos e exercendo pressão injusta. E, quando em rivalidade diante do conflito de interesses, estas devem convergir por meio do entendimento mútuo, da avaliação objetiva e de um compromisso justo, em concordância com o resguardo da vida e da dignidade.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

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