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Eudes Bernardino da Silva Júnior, mestrando em Direito Econômico e Desenvolvimento – UCAM. Procurador Federal da Advocacia Geral da União. Procurador-Chefe Adjunto da Procuradoria Federal junto à UFRJ.  Pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisas Avançadas em Direito Internacional e Ambiental – LEPADIA/UFRJ.

11
Setembro 
2024

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Segurança Alimentar na Perspectiva da Organização das Nações Unidas (ONU)

 

         

          Em 2015, o Brasil se comprometeu com os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) apresentados pela Organização das Nações Unidas (ONU) no documento “Transformando nosso mundo: a agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável”, dentre os quais o de acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e a melhoria da nutrição, e promover a agricultura sustentável.

          Em que pese a realização destes objetivos ser responsabilidade de todos os países que se comprometeram com esta Agenda 2030, a Organização das Nações Unidas (ONU), por meio das suas cinco Agências (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura – FAO; Fundo Internacional para o Desenvolvimento Agrícola - FIDA; Fundo das Nações Unidas para a Infância - UNICEF; Programa Alimentar Mundial - WFP; e Organização Mundial de Saúde - OMS), vem desenvolvendo ações para progredir em direção a um mundo livre de fome, da insegurança alimentar e da desnutrição em todas as suas formas.

          A cada ano, este grupo organiza estudos sobre o estado de segurança alimentar e de nutrição no mundo. Recentemente, reconheceram que os principais fatores causadores da insegurança alimentar e da desnutrição são os conflitos armados, eventos climáticos extremos, situações econômicas desfavoráveis e crescente desigualdade, e que estamos muito distantes do compromisso assumido, sobretudo com relação à meta de fome zero, pois as projeções atualizadas mostram que 582 milhões de pessoas estarão cronicamente subnutridas em 2030, isto é, cerca de 130 milhões a mais do que em um cenário que refletia a economia mundial antes da pandemia da COVID-19.

          A Organização das Nações Unidas – ONU utiliza como principais fontes de dados para insegurança alimentar aguda a Integrated Food Security Phase Classification (IPC) e o Cadre Harmonisé (CH). Esses são processos multissetoriais baseados em consenso que resultam em uma classificação da magnitude e gravidade da insegurança alimentar aguda com base em uma convergência de evidências e que são comparáveis entre países. Esta classificação se dá em uma das 5 fases, nos seguintes termos:

 

Figura 1: Descrição da fase de insegurança alimentar aguda do IPC/CH e objetivos de resposta

 

 

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Fonte: FSIN and Global Network Against Food Crises. 2024. GRFC 2024. Rome. Disponível em: https://www.fsinplatform.org/grfc2024. Acesso em 08 set. 2024.

 

          Classificadas como insegurança alimentar aguda, as fases 4 e 5 destacadas acima demandam ações urgentes visando salvar vidas. A fase 5, especificamente, representa uma realidade em que a fome se estabelece, caracterizando uma situação descrita como catastrófica, em que se evidenciam níveis extremamente críticos de desnutrição aguda, com fome e morte em larga escala.

          O relatório denominado “O Estado da Segurança Alimentar e Nutricional no Mundo 2024”, mostra que entre 713 e 757 milhões de pessoas podem ter enfrentado fome em 2023 – uma em cada 11 pessoas no mundo, e uma em cada cinco na África. O continente africano é a região com a maior porcentagem da população enfrentando fome – 20,4%, em comparação com 8,1% na Ásia, 6,2% na América Latina e Caribe e 7,3% na Oceania.

Figura 2: Concentração e distribuição da insegurança alimentar por gravidade em 2023         

 

Fonte: FAO, IFAD, UNICEF, WFP e WHO. 2024. O Estado da Segurança Alimentar e Nutricional no Mundo 2024 – Financiamento para acabar com a fome, a insegurança alimentar e a desnutrição em todas as suas formas. Roma. Disponível em https://doi.org/10.4060/cd1254en. Acesso em 08 set. 2024.

 

          Os cinco países com o maior número de pessoas enfrentando altos níveis de insegurança alimentar aguda foram, em ordem decrescente, a República Democrática do Congo, Nigéria, Sudão, Afeganistão e Etiópia, enquanto os países com a maior parcela da população analisada pela pesquisa enfrentando altos níveis de insegurança alimentar aguda foram Palestina (Faixa de Gaza), Sudão do Sul, Iêmen, República Árabe Síria e Haiti.

          O Relatório específico que destacou a situação da Faixa de Gaza, denominado “Faixa de Gaza - Análise de Insegurança Alimentar Aguda do IPC”, publicado em 18 de março de 2024, após analisar 100% da população (2,23 milhões), apontou que 1,1 milhão de pessoas, metade de gaza, experimentam uma insegurança alimentar catastrófica. Da outra metade, 854 mil pessoas se encontram em situação de emergência (IPC/CH Fase 4), retratando níveis muito elevados de desnutrição aguda.

          Devido ao conflito intenso e restrições humanitárias na Faixa de Gaza, no período compreendido entre 7 de outubro de 2023 e 24 de fevereiro de 2024, de uma previsão de 500 caminhões por dia de ajuda humanitária, dos quais 150 deveriam transportar alimentos, apenas 90 caminhões conseguiram entrar por dia, dos quais 60 transportavam alimentos. Consequentemente, adultos priorizaram a alimentação das crianças, sacrificando suas próprias necessidades. A situação é ainda mais crítica nas regiões do norte, onde quase dois terços das famílias relataram passar dias e noites inteiros sem comer.

          Além da Palestina, Burkina Faso, Somália e Sudão do Sul também enfrentaram crises humanitárias graves, com populações significativas em condições de insegurança alimentar aguda. O Relatório Global sobre Crises Alimentares (GRFC), publicado em 2024, fornece dados e evidências sobre a insegurança alimentar aguda e desnutrição nestes países.

          Entre junho e agosto de 2023, previa-se que cerca de 42.700 habitantes de Burkina Faso estariam em situação de Catástrofe (CH Fase 5), principalmente nas regiões de Boucle du Mouhoun e Sahel, devido à intensidade dos conflitos que impediram o funcionamento adequado dos mercados e deixaram as populações sitiadas, restringindo severamente os movimentos populacionais, o acesso aos campos e a entrega de assistência humanitária.

          No que diz respeito à Somália, o relatório aponta que mais de 40 300 pessoas estiveram em situação de Catástrofe até o terceiro trimestre de 2023, representados principalmente pelos deslocados internos em Mogadíscio, Baidoa e Burhakaba, devido aos impactos persistentes da seca, à ruptura dos meios de subsistência, ao impacto dos preços elevados dos alimentos e ao conflito prolongado. No entanto, este número representa uma diminuição significativa em relação às 214 mil pessoas em 2022. No último trimestre de 2023, nenhuma população foi estimada na Fase 5 do IPC, apesar de grandes números permanecerem na Fase 4 do IPC.

          A crise humanitária no Sudão do Sul, sobretudo nos estados de Jonglei e Unity, atingiu níveis catastróficos em 2023. Entre abril e julho, mais de 43 mil pessoas enfrentaram fome aguda e generalizada, de acordo com a classificação IPC. Este cenário tende a se agravar em 2024, uma vez que há projeção de que quase 80 mil pessoas estarão nesta situação, incluindo um grande número de refugiados retornados, que vivem em condições de miséria extrema.

          É preciso reconhecer que em algumas regiões ocorreu a superação deste estado catastrófico. No Afeganistão e na Nigéria, as pessoas que se encontravam em situação de Catástrofe (IPC/CH Fase 5) em 2022 não enfrentaram mais essas condições severas em 2023. No Haiti, a população projetada nesta fase em Cité Soleil no período entre setembro de 2022 e fevereiro de 2023, não enfrentaram mais essa condição pelo restante de 2023.

          Sabe-se que a insegurança alimentar aguda é motivada por vários fatores que estão interligados e se reforçam mutuamente. O conflito é o principal deles, interferindo diretamente na disponibilidade e no acesso de alimentos, bem como limitando a capacidade das comunidades e dos países de resistir e se recuperar de choques climáticos e econômicos, outros dois fatores muito significativos.

          Os conflitos e os eventos climáticos extremos impulsionam pessoas para a situação de crise alimentar aguda. Na África Central e Meridional, 12 milhões de pessoas, em sete países, enfrentaram altos níveis de insegurança alimentar aguda, principalmente devido ao impacto das condições de seca na produção agrícola e à destruição decorrente das enchentes causadas pelo ciclone Freddy, em março de 2023.      

          Do total de 59 países/territórios analisados no Relatório Global sobre Crises Alimentares (GRFC), o conflito/insegurança foi o principal fator que impulsionou 20 deles para a insegurança alimentar aguda, em que quase 135 milhões de pessoas enfrentaram esta situação em 2023.

          Outra questão que interfere sobremaneira na segurança alimentar, e que decorre dos fatores supracitados, diz respeito ao deslocamento de pessoas. Conflitos crescentes e prolongados, eventos climáticos extremos e choques econômicos resultaram em um aumento do número de pessoas forçadas a fugir de suas casas em 2023. Em 59 países/territórios em crise alimentar, o número de pessoas deslocadas atingiu 90,2 milhões.

          Os Rohingya, uma minoria muçulmana perseguida em Mianmar, encontraram refúgio em Bangladesh, onde se tornaram a maior população de refugiados em campos do mundo. Fugindo da violência em Rakhine, mais de 750 mil pessoas buscaram segurança em Cox's Bazar. No entanto, a falta de documentos e a proibição de trabalhar formalmente os tornaram altamente vulneráveis. Sem perspectivas de retorno e dependentes da assistência humanitária, os Rohingya enfrentam uma crise humanitária prolongada.

 

          O Líbano, país que abriga a maior proporção de refugiados em relação à sua população, enfrenta uma crise humanitária complexa. Atualmente, cerca de 800 mil sírios estão registrados como refugiados no país, mas esse número pode chegar a 1,5 milhão, incluindo não registrados. A insegurança alimentar afeta mais de 40% dos refugiados sírios.

 

          A Somália está imersa em uma profunda crise humanitária, marcada por conflitos e desastres naturais. A combinação de décadas de instabilidade política e o aumento da frequência e intensidade de eventos climáticos extremos, como secas e inundações, tem levado ao deslocamento massivo da população. Em 2023, mais de um milhão de pessoas foram forçadas a deixar suas casas, e cerca de dois terços delas enfrentam níveis críticos de insegurança alimentar. A perda de meios de subsistência e o aumento dos preços dos alimentos e da água têm agravado a situação e dificultado a recuperação.

          A urbanização é o quarto fator que começa a ser considerado nos relatórios da ONU, pois ela está remodelando profundamente os sistemas agroalimentares globais. A crescente concentração populacional em áreas urbanas, combinada com mudanças nos padrões de consumo e na disponibilidade de alimentos, está transformando a forma como produzimos, processamos e consumimos alimentos. Essa transformação apresenta tanto desafios quanto oportunidades. Por um lado, a urbanização pode facilitar o acesso a uma variedade maior de alimentos e impulsionar a criação de empregos nas cadeias de valor. Por outro lado, a proliferação de alimentos ultraprocessados e a exclusão de pequenos agricultores podem agravar problemas como a obesidade e a insegurança alimentar.

          A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável reconhece a importância da urbanização para diversos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, incluindo a erradicação da pobreza, a saúde e o bem-estar, a redução das desigualdades e o consumo e produção responsáveis. Compreender as complexidades da urbanização e seus impactos nos sistemas agroalimentares é fundamental para desenvolver políticas públicas eficazes que promovam a segurança alimentar e nutricional, a saúde e o desenvolvimento sustentável.

          A falta de melhoria na segurança alimentar e o progresso desigual no acesso econômico a dietas saudáveis lançam uma sombra sobre a possibilidade de atingir a Fome Zero no mundo. Faltando seis anos do prazo de 2030, há necessidade de acelerar a transformação de nossos sistemas agroalimentares para fortalecer sua resiliência aos principais impulsionadores e abordar as desigualdades para garantir que dietas saudáveis sejam acessíveis e estejam disponíveis para todos.

          Quanto a meta de alcançar a segurança alimentar e melhoria da nutrição, alguns progressos foram identificados nos relatórios, tais como aumento da taxa global de amamentação exclusiva entre bebês menores de seis meses de idade, aumentando de 37,1% em 2012 para 48% em 2022. No entanto, o mundo está longe de atingir a meta de 70% até 2030.

          Entre crianças menores de cinco anos, a prevalência global de nanismo caiu de 26,3% em 2012 para 22,3% em 2022. Prevê-se que 19,5 por cento de todas as crianças com menos de cinco anos sofrerão de atraso de crescimento em 2030. Por outro lado, até 2030, prevê-se que 5,7% das crianças menores de cinco anos terão excesso de peso — quase o dobro da meta global estabelecida de 3%.

          Quanto à obesidade adulta, estimativas mostram um aumento constante na última década, de 12,1% em 2012 para 15,8% em 2022. O mundo está fora do caminho para atingir a meta global de 2030 para interromper o aumento, com mais de 1,2 bilhão de adultos obesos projetados para 2030. Percebe-se que passamos a conviver com o duplo fardo da desnutrição, a coexistência da subnutrição juntamente com o sobrepeso e a obesidade.

          Considerando as perspectivas da própria Organização das Nações Unidas (ONU), extraídas dos relatórios que subsidiaram esta pesquisa, o cumprimento das Metas dos ODS 2.1 e 2.2 para acabar com a fome, a insegurança alimentar e a desnutrição até 2030, está demasiadamente difícil de ser alcançado. Causa perplexidade o fato de que, em um mundo com tanta fartura, chegamos ao ano de 2023 com mais de 700 mil pessoas à beira da fome, aproximadamente o dobro do número de 2022.

          Não é despiciendo ressaltar que a fome traduz uma situação catastrófica, segundo a descrição da fase de insegurança alimentar aguda do IPC/CH, que demanda uma ação urgente e necessária para reverter/prevenir a morte generalizada e o colapso total dos meios de subsistência.

          A mobilização efetiva dos sistemas internacionais pode ser a tábua de salvação para este grande mal que assola um número tão expressivo de pessoas, porém depende de um compromisso político e financeiro sólido. Faltando seis anos para 2030, mais do que criar uma nova agenda, temos que repensar a efetividade do Direito Internacional frente aos grandes desafios inerentes aos Direitos Humanos e à preservação do meio ambiente.

 

Referências Bibliográficas:

  • FAO, IFAD, UNICEF, WFP and WHO. 2024. The State of Food Security and Nutrition in the World 2024 – Financing to end hunger, food insecurity and malnutrition in all its forms. Rome. Disponível em: https://doi.org/10.4060/cd1254en. Acesso em 08/09/2024.

 

  • FAO, FIDA, OMS, PMA y UNICEF. 2023. El estado de la seguridad alimentaria y la nutrición en el mundo 2023. Urbanización, transformación de los sistemas agroalimentarios y dietas saludables a lo largo del continuo rural-urbano. Roma, FAO. Disponível em: https://doi.org/10.4060/cc3017es. Acesso em 08/09/2024.

 

 

 

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