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Emilia Davi Mendes

 

 

Advogada. Mestra em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC). Pesquisadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas Avançadas em Direito Internacional Ambiental da UFRJ. E-mail: emiliadmendes@outlook.com.

28
  Fevereiro 
2024

O papel dos entes subnacionais na formulação de políticas públicas de transição energética justa

O planejamento brasileiro para a transição energética insere-se na conjuntura da governança multinível. Seu enquadramento analítico enfrenta o desafio de mapear a interação 'horizontal' que transcorre entre uma vasta gama de agentes que transcendem a esfera estatal. Além disso, surge uma complexidade adicional oriunda da incorporação de múltiplos níveis de governo, isto é, a dimensão 'vertical' da interação. Essa dinâmica envolve aspectos de centralização e de descentralização, em um debate associado à discussão mais ampla sobre as relações entre federalismo e políticas públicas.

O federalismo, traduzido pela fórmula genérica self-rule plus shared-rule (ELAZAR, 1987), é uma forma de Estado que procura equilibrar autonomia e interdependência entre várias entidades governamentais dentro de um Estado. Burgess (1993) pontua que o federalismo é um sistema adotado pelos países diante da presença de heterogeneidades significativas em uma nação, como diferenças territoriais, étnicas, linguísticas, socioeconômicas, culturais e políticas. Assim, busca-se o equilíbrio entre "self rule" e "shared rule", em um esforço para manter a unidade na diversidade e lidar com as complexidades de uma nação diversificada (Burgess, 1993).

No Brasil, o federalismo é uma cláusula pétrea da Constituição Federal de 1988, que arquitetou um padrão institucional de federalismo cooperativo, estabelecendo uma ampla gama de competências comuns e concorrentes entre os entes federados (LINCK; IANONI, 2022), elencadas nos seus artigos 23 e 24.

Assim, para autores como Almeida (2005), Arretche (2012) e Souza (2019), o sistema federativo brasileiro encaminha-se para o modelo cooperativo, marcado por funções compartilhadas entre diferentes esferas de governo e pelo fim de padrões de responsabilidade e autoridade claramente delimitados. Contudo, Almeida (2005) destaca a centralização da autoridade política no nível federal, de modo que as políticas são predominantemente definidas neste nível, e têm as responsabilidades por sua gestão e implementação transferidas para outras esferas governamentais (estados e municípios).

A descentralização no Brasil não deve ser vista apenas como uma transferência de competências, mas também como um processo que envolve a autonomia decisória dos governos subnacionais (BICHIR, 2012). Isso implica que, embora o governo federal possa definir diretrizes gerais para políticas sociais, a implementação e adaptação destas políticas dependem significativamente da governança subnacional. Este aspecto é particularmente relevante em áreas como meio ambiente e energia, onde a execução das políticas envolve a colaboração entre diferentes níveis de governo e atores sociais. Governos subnacionais precisam realizar adaptações e criar normativas em matéria de transição energética justa para que consigam atingir este objetivo de acordo com as suas particularidades e contextos específicos.

A atual Constituição enumerou os poderes da União, os poderes remanescentes para os estados membros e definiu indicativamente os poderes conferidos aos municípios. Além disso, combinou a reserva de áreas específicas de atuação da União com outras diretrizes, quais sejam: a possibilidade de delegação de competências (art. 22, parágrafo único da CRFB/88: “lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas neste artigo”); áreas comuns, em que se estabelece atuações paralelas dos três entes federativos, com normas de cooperação entre os entes a serem fixadas por leis complementares (art. 23 e parágrafo único da CRFB/88); e setores concorrentes, cuja competência para estabelecer políticas, diretrizes ou normas gerais cabe à União, conferindo-se aos estados e municípios a competência suplementar (art. 24, §§1º ao §4º e art. 30, II, da CRFB/88).

A competência para legislar sobre energias é privativa da União (art. 22, IV), aplicando-se excepcionalmente a possibilidade de delegação de competências sobre questões específicas vinculadas ao tema aos demais entes federativos. Nesse sentido, o arcabouço institucional, legal e regulatório do sistema energético nacional é estabelecido pelo governo federal (policy decision-making), reservando-se aos entes subnacionais a cooperação na implementação de políticas públicas para a concretização desses objetivos comuns (policy-making).

Uma das características da atual transição energética pautada em objetivos climáticos consiste na premissa de que uma sociedade pautada em recursos renováveis demanda o território como a base última da riqueza para satisfazer as suas necessidades energéticas e materiais. A dimensão espacial é comum a quase todas as fontes energéticas renováveis que estão associadas a recursos naturais, como a solar, eólica, hidroelétrica e os biocombustíveis. Assim, o almejado desenvolvimento e expansão dessas energias implica no aumento da demanda de já limitados recursos como água e território, exigindo, portanto, o necessário planejamento espacial para o zoneamento, a garantia de terra e água, e a minimização de conflitos espaciais (STOEGLEHNER; NIEMETZ; KETTL, 2011; LÁZARO et al. 2020).

A dimensão espacial resguarda íntima ligação com os processos de transição energética, de modo que revela também o papel fundamental de atores e políticas descentralizados em adaptar objetivos climáticos globais aos níveis regional e local (LÁZARO et al., 2022). Nesse sentido, a literatura sugere que a transição energética requer não apenas abordagens top-down do governo centralizado, mas também desenvolvimentos bottom-up partindo de jurisdições subnacionais em favor da implementação de políticas energéticas e climáticas. Outrossim, a ampla teoria sobre governança multinível destaca que o sucesso da governança energética e climática é indissociável da mobilização de todos os níveis de governo, e que o seu endereçamento em políticas subnacionais é crucial na resposta global às alterações climáticas (DOBRAVEC et al., 2021).

A incorporação de inovações e alternativas baseadas nos contextos subnacionais contribui diretamente para a diversificação do planejamento para a transição energética e ressalta a importância de alternativas criadas por níveis organizacionais abaixo do governo federal centralizado (LÁZARO et al., 2022). A execução de políticas pelos governos subnacionais confere margens de autonomia em relação às decisões próprias da implementação, tornando-as passíveis de acréscimos de ações aos padrões estabelecidos pelo governo federal e à promoção de inovações restritas às suas jurisdições (LINCK; IANONI, 2022). Dessa forma, os governos locais tornam-se verdadeiros “laboratórios de inovações”, que, sendo bem-sucedidas, podem ser incorporadas à agenda nacional (ARRETCHE, 2012).

           

Segundo Krawchenko e Gordon (2022), as transições têm dinâmicas únicas baseadas no local, para as quais são necessárias diversas estratégias. O desenvolvimento regional – concebido de forma ampla – envolve esforços para reduzir as disparidades territoriais e apoiar o desenvolvimento econômico e social em todos os tipos de regiões. Isso pode implicar apoio e intervenções abrangendo os níveis nacional, regional e local, e a coordenação entre eles. Assim, o planejamento desenvolvido em nível subnacional é um importante mecanismo para a promoção desta coordenação multinível, promovendo conexões verticais e horizontais, sem perder de vista as particularidades e desafios que se operam no plano local.

REFERÊNCIAS

 

ALMEIDA, M. H. T. Recentralizando a federação? Revista de Sociologia e Política, 24, 29-40, 2005. doi: 10.1590/ S0104-44782005000100004.

 

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgado em 5 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: 01 jan. 2024.

 

ELAZAR, D. Exploring federalism. Tuscaloosa: The University of Alabama Press, 1987.

 

BURGESS, M. Federalism and Federation: a reappraisal. In: BURGESS, M.; GAGNON, A. (orgs.). Comparative Federalism and Federation. Harvester, 1993.

 

LINCK, Lorena Carvalho; IANONI, Marcus. O federalismo cooperativo no Brasil e o sistema multinível de gestão ambiental. Desenvolvimento e Meio Ambiente, v. 60, 2022.

 

ARRETCHE, M. Democracia, federalismo e centralização no Brasil. Rio de Janeiro: FGV; Fiocruz, 2012.

 

SOUZA, C. Intermediação de interesses regionais no Brasil: o impacto do federalismo e da descentralização. Dados, 41(3), 1998. doi: 10.1590/S0011-52581998000300003. 

 

BICHIR, Renata. Governança multinível. Boletim de Análise Político-Institucional, nº 19, dez. 2018. Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/8969. Acesso em: 27 jan. 2024.

 

STOEGLEHNER, Gernot; NIEMETZ, Nora; KETTL, Karl-Heinz. Spatial dimensions of sustainable energy systems: new visions for integrated spatial and energy planning. Energy, Sustainability and Society, v. 1, n. 1, p. 1-9, 2011.

 

LÁZARO, L. L. B. et al. Energy transition in Brazil: Is there a role for multilevel governance in a centralized energy regime? Energy Research & Social Science, v. 85, p. 102404, 2022.

 

DOBRAVEC, Viktorija et al. Multilevel governance energy planning and policy: A view on local energy initiatives. Energy, Sustainability and Society, v. 11, p. 1-17, 2021.

 

KRAWCHENKO, Tamara Antonia; GORDON, Megan. Just transitions for oil and gas regions and the role of regional development policies. Energies, v. 15, n. 13, p. 4834, 2022.

 

SOUZA, C. Coordenação, uniformidade e autonomia na formulação de políticas públicas: experiências federativas no cenário internacional e nacional. Cadernos de Saúde Pública [online], 35 (suppl. 2), e00046818, 2019. doi: 10.1590/0102- 311X00046818.

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