Denise Abreu Cavalcanti
Doutoranda em Direito pela Faculdade Autônoma de São Paulo – FADISP; Mestre em Direito das Migrações Transnacionais, pela UNIVALI/UNIPG Universidade de Perúgia/Itália; Curso de extensão em Direito Internacional e Comunitário de Imigração e Asilo através da Jurisprudência, na Universidad de Barcelona; Vice-Presidente da Comissão Nacional de Refugiados do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM para o biênio 2022/2024. Coordenadora do Projeto de Assessoria Jurídica Voluntária as Pessoas Migrantes e Refugiadas na Operação Acolhida, vencedora do Prêmio Innovare 2022, categoria Advocacia. Pesquisadora no Laboratório de Estudos e Pesquisas Avançadas em Direito Internacional Ambiental – LEPADIA da UFRJ. Assessora Parlamentar no Congresso Nacional. Advogada. E-mail: cavalcantidenise021@gmail.com. http://lattes.cnpq.br/0018685558241908
Ricardo Castilho
Pós-Doutor em Direito pela USP e UFSC; Doutor em Direito pela PUCSP; Professor Titular de Filosofia e Direitos Humanos no programa de Mestrado e Doutorado da FADISP; Fundador e Diretor da Escola Paulista de Direito - EPD e Law Concept Academy - LCA; Advogado e Parecerista.

24
Julho
2024
AYLAN KURDI - 9 ANOS DEPOIS. O QUE MUDOU?
A travessia do Mar Mediterrâneo é sem duvida uma das mais mortais para aqueles que deixam seus países de origem, fugindo da fome, de perseguições, de catástrofes ambientais, de guerras ou outros tipos de perturbação da ordem pública. São pessoas que partem em busca de um novo recomeço, em terras distantes, principalmente em países, do conhecido e sonhado, primeiro mundo europeu.
O sonho europeu é alimentado por muitos migrantes e refugiados que chegam dos continentes africano e asiático, mas principalmente por aqueles nacionais de países que outrora tiveram estreita relação de colonizadores e colonizados, mas que com a independência, se viram mergulhados em governos ditatoriais e corruptos, vivendo sob guerras e conflitos internos, em países devastados por desordem interna econômica e social.
Nos últimos cinco anos, pelo menos 15 conflitos se iniciaram ou foram retomados: oito na África (Costa do Marfim, República Centro-Africana, Líbia, Mali, nordeste da Nigéria, República Democrática do Congo, Sudão do Sul e Burundi), três no Oriente Médio (Síria, Iraque e Iêmen); um na Europa (Ucrânia); e três na Ásia (Quirquistão e em diferentes áreas de Mianmar e Paquistão).[1]
Tais conflitos e muitos outros que eclodiram recentemente, estão longe de terminarem, apontando que falta ao mundo mais tolerância e diálogo, não só sobre a luz dos direitos fundamentais, mas de igual forma, sob a ótica da dignidade humana e da solidariedade humana.
Segundo o ACNUR – Agência das Nações Unidas para Refugiados, até o final de 2022, cerca de 108,4 milhões de pessoas em todo o mundo foram forçadas a deixar suas casas, sendo que deste total, 40% são crianças.[2]
Nesse diapasão, famílias inteiras e muitas das vezes crianças não acompanhadas, partem em busca de um novo recomeço, em busca de proteção, arriscando a própria vida, escondidos em navios de grande porte, em aviões cargueiros ou, na cruel rota marítima, cruzando os mares em pequenas, frágeis e superlotadas embarcações.
Ainda segundo o ACNUR, 52% de todos os refugiados e outras pessoas em necessidade de proteção internacional vieram de apenas três países, República Árabe da Síria (6.500.000), Ucrânia (5.700.00) e Afeganistão (5.700.00).[3]
As travessias marítimas como no Mediterrâneo, no Golfo de Áden e no Mar Vermelho, partindo do Norte da África e Turquia, estão entre as mais letais, levando a União Europeia a criar o Fundo Fiduciário de Emergência da UE (FFUE) para África. O FFUE, criado em 2015, com orçamento superior a 5 mil milhões de euros, tem por missão combater as causas profundas das deslocações forçadas e da migração irregular e de contribuir para uma melhor gestão da migração.[4]
As incessantes tentativas de países pertencentes ao Bloco da União Europeia não são suficientes para barrar a chegada de novos migrantes e solicitantes de asilo, que se arriscam, como dito acima, em perigosas travessias marítimas, vítimas, muitas das vezes, de traficantes e contrabandistas, que prometem leva-los ao solo europeu.
A Comissão Espanhola de Ajuda ao Refugiado – CEAR, assevera que nos últimos seis meses, cerca 7 (sete) pessoas morrem por dia nas fronteiras marítimas da União Europeia, realizando a travessia em precárias embarcações, o que equivale ao total, de janeiro a junho, de 1.367 (mil trezentos e sessenta e sete) óbitos.
Según los registros de Missing Migrants, 2023 ha sido el tercer año con mayor número de llegadas y mayor número de muertes que lamentar en las fronteras marítimas europeas desde 2014, por detrás de 2015 (1.032.408 llegadas y 4.137 personas fallecidas) y 2016 (373.652 llegadas y 5.305 muertes). En esas fechas, miles de personas tenían que huir de la violencia y la guerra en Siria, Afganistán e Irak, lanzándose al mar desesperadas por la falta de otras vías legales y seguras para buscar refugio o una vida digna.[5]
Há quase 9 anos, em setembro de 2015, o mundo assistiu uma cena que chocou a todos, o corpo do pequeno Aylan Kurdi, de 3 anos de idade, revolto pelas águas de uma das praias turca, quando sua família tentava alcançar a Grécia. No mesmo naufrágio, morreram o irmão e a mãe de Aylan, o único sobrevivente foi seu pai.[6] A família de Aylan, original da Síria, assim com outras, partiu em busca de proteção e de garantia de direitos fundamentais. A guerra na Síria teve início em 2011.[7]
Os anos seguintes continuaram a chocar o mundo, mas sem rostos, sem nomes. A Organização Internacional das Migrações – OIM, estima que em 2016, 189 crianças morreram afogadas no Mar Mediterrâneo[8]. Segundo o UNICEF, somente em 2023, 11.600 crianças tentaram realizar travessia, a maioria estava desacompanhada e cerca de 11 crianças, por semana, morrem ao tentar realizar a travessia.[9]
A cada ano o número de pessoas que tentam chegar a Europa, por diversas rotas, vem aumentando, os acordos de contenção, que nada mais são do que uma forma de tentar conter a migração, são utilizados como forma de negar a proteção de direitos fundamentais violados não só na origem, mas de igual forma, nas abordagens e devoluções sumárias.[10]
Os acordos de cooperação e o reforço da “segurança” não pararam de proliferar com países do Norte de África como a Tunísia, onde foi demonstrado que os direitos dos migrantes e requerentes de asilo são violados; e as ONG que resgatam pessoas no mar são criminalizadas e perseguidas, tornando as rotas migratórias cada vez mais perigosas e letais, impondo que as pessoas sejam alvos de máfias de contrabando de migrantes e de redes de tráfico.[11]
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo II, prevê a universalidade dos direitos humanos com base no reconhecimento da igualdade de todos, independentemente das diferenças, diante do princípio da dignidade humana inerente a todo humano. Basta ser humano para titularizá-los. Essa constatação – e sua consagração em um documento internacional – é de extrema importância, eis que, historicamente, conquistas neste campo foram sempre restritas a parcelas da população.[12]
O Conselho Justiça e Assuntos Internos de Outubro registrou um grande aumento nos movimentos migratórios, onde mais de 90.000 migrantes e refugiados chegaram pela rota do Mediterrâneo Central, partindo sobretudo, da Líbia e da Tunísia, e originários principalmente do Egito, Tunísia e Bangladesh, o que representa um aumento de mais de 50% em comparação com 2021.[13]
Enquanto a Europa estiver preocupada em conter e impedir a chegada de migrantes em seu território, por meio de politicas migratórias centradas exclusivamente no controle de suas fronteiras terrestres e marítimas, celebrando acordos de interceptação, pondo em risco a proteção das pessoas, impedindo que lhes sejam assegurados direitos fundamentais, muitos Aylanes continuarão existindo, morrendo diariamente nas belas e aprazíveis águas do Mediterrâneo. Até quando?
Referências
[1] GUERRA, Sidney. Curso de Direito Internacional Público. 12ª. ed., São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p.466.
[2] ACNUR. Dados sobre Refúgio. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/dados-sobre-refugio/. Acesso em 03/09/2023.
[3] Ibdem.
[4] Conselho Europeu. Fluxos migratórios na rota do Mediterrâneo Central. Disponível em: https://www.consilium.europa.eu/pt/policies/eu-migration-policy/central-mediterranean-route/ Acesso em 03/09/2023.
[5] 11 personas murieron cada día en el mar intentando alcanzar Europa en 2023. Disponível em: https://www.cear.es/11-personas-murieron-mar-europa-2023/. En 16 de enero de 2024. Acesso em 13/07/2024.
[6] COMISSIÓN ESPAÑOLA DE AYUDA AL REFUGIADO ¿Cuántos Aylanes va a permitir Europa? Em 01/09/2023. Disponível em: https://www.cear.es/cuantos-aylanes-va-a-permitir-europa/. Acesso em 03/09/2023.
[7] Desde septiembre de 2015 han muerto 423 niños en el mar. Em 02/09/2016. Disponível em: https://www.telesurtv.net/news/Desde-septiembre-de-2015-han-muerto-423-ninos-en-el-mar-20160902-0021.html. Acesso em 03/09/2023
[8] Ibdem.
[9] COMISSIÓN ESPAÑOLA DE AYUDA AL REFUGIADO ¿Cuántos Aylanes va a permitir Europa? Em 01/09/2023. Disponível em: https://www.cear.es/cuantos-aylanes-va-a-permitir-europa/. Acesso em 03/09/2023.
[10]No que pese a proibição de expulsão coletivas de estrangeiros, conforme previsto no Protocolo Adicional n° 4, promulgado em Estrasburgo em 16 de setembro de 1963, art. 4º. Disponível em: https://www.echr.coe.int/documents/d/echr/convention_por Acesso em 03/09/2023.
[11] Ibdem.
[12] CASTILHO. Ricardo. Direitos Humanos. 4ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p 143.
[13] EU ACTION PLAN FOR THE CENTRAL MEDITERRANEAN. Disponível em: https://home-affairs.ec.europa.eu/system/files/202211/EU%20Action%20Plan%20for%20the%20Central%20Mediterranean_en.pdf. Acesso em 03/09/2023.
Imagem: disponível em: https://abcdoabc.com.br/2-484-imigrantes-e-refugiados-morreram-no-mediterraneo-mostra-relatorio/. Acesso 24 jul. 2024.


03
Abril
2024
A Mutilação Genital Feminina (MGF) ou circuncisão feminina, consiste na remoção, parcial ou total, dos órgãos genitais externos femininos (clitórios e grandes lábios). Questões culturais e religiosas permeiam a MGF, consistindo, em algumas localidades, como um ritual de passagem da infância à vida adulta e como um requisito para o casamento, sendo realizado, na maioria das vezes, contra a vontade da criança/mulher. O procedimento é feito sem anestesia, com auxilio de uma lâmina, impondo, além de problemas físicos, problemas mentais e psicológicos as vítimas.
Segundo a The Woman Stats Project, a prática da MGF está concentrada, principalmente, em cerca de 30 países na África e no Oriente Médio, e em alguns países da América Latina, Leste Europeu, América do Norte, Austrália e Nova Zelândia onde vivem comunidades de migrantes.
O procedimento é realizado em idades muito diferentes, desde logo após o nascimento e a primeira gravidez, mas geralmente ocorre quando a menina se encontra entre 4 e 8 anos de idade. A menina é imobilizada, geralmente por mulheres idosas, com as pernas abertas. A mutilação é feita com cacos de vidro, tampa de lata, tesoura, lâmina de faca ou outro instrumento pontiagudo. Em sendo meninas de um poder aquisitivo privilegiado, a mutilação pode ser realizada por um médico qualificado em um hospital com anestesia local ou geral.[1]
A Organização Mundial da Saúde descreve a Mutilação Genital Feminina, como "um procedimento que fere os órgãos genitais femininos sem justificativa médica".
A Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, adotada em Istambul, a 11 de maio de 2011, foi aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 4/2013, de 14 de dezembro de 2012, impondo que os Estados, a nível internacional, tutelem os direitos humanos das mulheres e meninas, instituindo como infração penal, dentre outros, a mutilação genital feminina.
Em 2016, o Fundo de População das Nações Unidas – UNFPA, em parceria com o UNICEF, lançou o programa Eliminação da Mutilação Genital Feminina: Cumprindo a Promessa Global, propondo ações para eliminar a mutilação genital feminina. Ainda segundo a UNFPA, no ano de 2023, cerca de 4,3 milhões de meninas correm o risco de sofrer mutilação genital feminina. E a previsão é de que esse número chegue a 4,6 milhões até 2030. Além disso, existem mais de 200 milhões de sobreviventes.[2]
A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, em um de seus objetivos, propõe que para se alcançar a igualdade de gênero e o empoderamento de todas as mulheres e meninas, sejam eliminadas todas as práticas nocivas, como os casamentos prematuros, forçados e de crianças e mutilações genitais femininas.
Nesse sentido, cabe aos Estados-Partes, realizarem uma análise propositiva, enfrentando a problemática da MGF, que fere a dignidade humana e viola direitos humanos de meninas e mulheres em todo mundo, como requisito essencial para a implementação de estratégias políticas visando sua erradicação.
O Brasil, por meio do Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE)[3], em sua 168ª. Reunião, ocorrida em março de 2023, aprovou a concessão do status de refugiada, prima facie, a meninas e mulheres nacionais de países com alta prevalência da prática de Corte ou Mutilação Genital Feminina.[4]
Segundo o CONARE, a prática de C/MGF é uma grave violação de direitos humanos de meninas e mulheres, com consequências graves no curto e longo prazo para a saúde mental, física e sexual das mulheres, que coexiste com formas adicionais de violência baseada em gênero. O ato é condenado por diversos tratados e convenções regionais e internacionais, e viola, entre outros, o direito à não discriminação com base no gênero, perpetuando a desigualdade entre homens e mulheres, o direito à vida (se o procedimento resultar em morte), à saúde e o direito a estar livre de tortura, punição ou tratamento cruel, desumano ou degradante. Em razão de a prática de C/MGF ser, na maior parte das vezes, efetuada em meninas menores de 15 anos, ela também viola os direitos da criança.
[1] La mutilación genital femenina y los derechos humanos Infibulación, excisión y otras prácticas cruentas de iniciación. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/tablas/12056.pdf
[2] Sem ação urgente, mundo perderá a meta de acabar com a mutilação genital feminina até 2030. Em 02/02/2023. Disponível em: https://brazil.unfpa.org/pt-br/news/sem-acao-urgente-mundo-perdera-meta-de-acabar-com-mutilacao-genital-feminina-ate-2030. Acesso em: 26/03/2024.
[3] Governo brasileiro vai conceder refúgio à vítimas de mutilação genital. Em 17/04/2023. Disponível em: https://migramundo.com/governo-reconhece-refugio-vitimas-de-mutilacao-genital/. Acesso em 23/03/2024.
[4] Conare aprova reconhecimento de mulheres refugiadas vindas de contextos de mutilação genital feminina. Aprovação pelo Comitê é um marco na luta global contra violência de gênero e justiça racial. Disponível em: https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/noticias/conare-aprova-reconhecimento-de-mulheres-refugiadas-vindas-de-contextos-de-mutilacao-genital-feminina. Acesso em 23/03/2024.
A CONCESSÃO PRIMA FACIE DO STATUS DE REFUGIADO PELO BRASIL PARA VÍTIMAS DE MUTILAÇÃO GENITAL FEMININA