Fernanda Tonetto
Doutora em Direito pela Université Paris II Panthéon-Assas; Doutora e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Mestre em Integração Latino-Americana pela Universidade Federal de Santa Maria; Procuradora do Estado do Rio Grande do Sul nos Tribunais Superiores.

16
Outubro
2024
O direito internacional ambiental no centro da preocupação da humanidade
Os diversos problemas ambientais de que o mundo tem sido palco atualmente colocaram a emergência climática na agenda da comunidade internacional. Apesar disso, a preocupação da humanidade com a proteção do meio ambiente é extremamente recente, iniciada em 1972, com a Conferência das Nações Unidas de Estocolmo.
À época, o seu objetivo não foi tão legítimo quanto possa parecer. Recém-saídos de suas colônias africanas e asiáticas, os países europeus, então impedidos da exploração em locais pródigos de florestas e minérios, adotaram o slogan do desenvolvimento sustentável, que acabou por ser imposto aos demais países em desenvolvimento de uma forma relativamente harmônica.
Na esteira de um incremento evolutivo do próprio direito internacional, as diversas catástrofes ambientais de que o mundo foi palco e os danos ambientais em geral, em especial ocorridos nas últimas décadas, fizeram emergir a necessidade de proteção do meio ambiente pela via do direito internacional, tanto no âmbito do sistema global quanto no terreno dos sistemas regionais de proteção. Surgem a partir daí diversas interações importantes entre o direito internacional e o meio ambiente, cujos conflitos acabam por aportar nas jurisdições internacionais e muito especialmente passam a ser objeto de proteção nos sistemas regionais de proteção aos direitos humanos.
Por isso, se, por um lado, o século XX lançou as bases de um novo direito internacional, semente do direito internacional dos direitos humanos, parece possível afirmar, por outro lado, que o século XXI é o berço do direito internacional ambiental, nascido da concepção de que os direitos humanos mais fundamentais, para serem gozados, têm como pressuposto um meio ambiente saudável.
Ao longo desses pouco mais de cinquenta anos, o direito internacional ambiental evoluiu significativamente e imprimiu uma marcha de harmonização aos ordenamentos jurídicos domésticos. Diversos foram os tratados internacionais sobre a matéria, a maioria deles adotados internamente pelos Estados, inclusive em matéria penal. Esse movimento, iniciado por um sistema normativo heterogêneo e descontínuo, repercutiu posteriormente nas jurisdições internacionais e nacionais.
Desde Estocolmo, a proteção ao meio ambiente se tornou um tema central em muitos tratados internacionais, destacando-se a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, cujo principal objetivo foi o de buscar estabilizar as concentrações de gases de efeito estufa na atmosfera para evitar interferências perigosas no sistema climático. Dentro dessa Convenção encontram-se o Protocolo de Quioto, de 1997, e o Acordo de Paris, firmado em 2015.
A seu turno, a finalidade do Acordo de Paris foi a de combater a mudança climática e intensificar os investimentos necessários para um futuro sustentável de baixo carbono, bem como de buscar limitar o aumento da temperatura global para abaixo de 2°C acima dos níveis pré-industriais e prosseguir esforços para limitar o aumento em 1,5°C. O Protocolo de Quioto, por sua vez, fixou como objetivo o de reduzir as emissões de gases de efeito estufa dos países industrializados e, para tanto, estabeleceu metas de redução de emissões para os países desenvolvidos e mecanismos de mercado, como o comércio de emissões.
São também destacáveis outros tratados internacionais sobre a matéria, a começar pela Convenção Internacional para a Prevenção da Poluição por Navios, de 1973, firmada com o objetivo de prevenir a poluição do meio marinho causada por navios, a Convenção de Viena para a Proteção da Camada de Ozônio, de 1985, bem como o Protocolo de Montreal, de 1987, que estabeleceu medidas para a redução da produção e consumo de substâncias que destroem a camada de ozônio.
Além disso, podem ser citadas a Convenção sobre Diversidade Biológica, de 1992, contendo planos de ação nacionais, medidas de conservação e utilização sustentável, a Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação, de 1994, firmada com vistas a mitigar os efeitos da seca através de ações efetivas em todos os níveis, além da Convenção de Estocolmo sobre Poluentes Orgânicos Persistente, firmada em 2001, com o objetivo de eliminar ou restringir a produção e uso de poluentes orgânicos persistentes que têm efeitos adversos à saúde humana e ao meio ambiente.
Esses tratados e convenções demonstram um contínuo esforço global para enfrentar os desafios ambientais através da cooperação internacional, visando a preservação e a sustentabilidade dos recursos naturais para as gerações futuras.
Diante de todo esse arcabouço normativo, atualmente essa proteção é efetuada em diferentes esferas jurisdicionais, em níveis internacional, regional e nacional.
No primeiro caso, tem se destacado a competência da Corte Internacional de Justiça, inclusive em matéria consultiva; no segundo caso, tem se revelado de especial importância a atuação das Cortes Regionais de Direitos Humanos; por fim, e não menos importante, os sistemas jurisdicionais nacionais atuam com bastante protagonismo na proteção ao meio ambiente, especialmente a partir de um movimento de internalização dos tratados internacionais sobre a matéria.
Certamente que muito há ainda a evoluir. Apesar de um desenvolvimento sem precedentes do direito internacional ambiental nas últimas décadas, a sua efetiva implementação depende de esforços efetivos dos principais signatários dos tratados internacionais sobre a matéria: os Estados e seus atores internos.

17
Julho
2024
Refugiado: uma vítima das guerras e dos desastres ambientais
O fenômeno migratório não é recente. Ao contrário, suas origens remontam aos primórdios das civilizações. O homem primitivo, quando constatava que a terra que lhe dava os meios necessários para o sustento próprio e dos seus já estava exaurida, procurava em outras regiões novos campos de abastecimento.
Embora esse mesmo fio condutor ainda motive os movimentos migratórios da atualidade, seu aumento é exponencial e suas causas são cada vez mais complexas. Dentre as mais marcantes estão as guerras e os desastres ambientais.
Em um cenário internacional cada vez mais marcado pelos conflitos e pelo desrespeito ao meio ambiente, é natural que o número de refugiados tenha aumentado significativamente, seja pela esperança de encontrar novas oportunidades e melhores condições de vida, seja por razões de pobreza extrema, de catástrofes naturais, ou pelo pior de todos os motivos: as guerras.
Apesar disso, a proteção conferida pelo direito internacional a essas vítimas ainda é incipiente.
O Estatuto dos Refugiados, de 1951, nasceu com grandes dificuldades, apesar da necessidade premente de regular‑se a situação daquelas pessoas que deixaram seus países, no mais das vezes portando apenas a roupa do corpo e um mínimo de esperança.
De lá para cá, o conceito de refugiado tem sofrido alargamentos necessários e passado a contemplar situações novas e não agasalhadas pelo incipiente direito internacional dos refugiados, reforçado que foi pelo Estatuto de 1966 e por alguns ordenamentos jurídicos nacionais.
Se, de um lado, o art. 1º da Convenção de 1951, definiu refugiado como todo o indivíduo que, em decorrência de fundados temores de perseguição, seja relacionado a sua raça, religião, nacionalidade, associação a determinado grupo social ou opinião política, encontra-se fora de seu país de origem, de outro lado, é premente a necessidade de evolução desse conceito em virtude de fenômenos novos, como é o caso dos refugiados ambientais e de conflitos internos que não se caracterizam tecnicamente como guerras.
O Brasil, por exemplo, pauta seu ordenamento jurídico na Convenção da ONU de 1951, bem como no seu protocolo adicional e na Convenção de Cartagena para tratar as questões relativas aos refugiados. É nessa esteira que a Lei n° 9.474/97 não trata dos refugiados ambientais e tampouco o faz a lei de migrações, apesar de ter representado um grande avanço em matéria de direitos humanos.
Nessa perspectiva, a opção feita pelo Estado brasileiro tem sido a proteção humanitária.
Mas essa não é a raiz do problema. Essa é apenas a consequência dele.
Sua causa remonta a outras questões, relacionadas ao poderio econômico e militar dos Estados que optam pela guerra como meio de solução de conflitos e que prezam pelo desenvolvimento a todo custo, a despeito dos danos ambientais que possam acarretar. O resultado dessa obra são populações vulneráveis sendo atingidas e tendo que buscar abrigo em algum canto do planeta.
Lamentavelmente, para esses Estados, esses seres humanos são apenas um “efeito colateral” dos conflitos armados e de um meio ambiente que, inevitavelmente, reage aos danos que sofre.
Se continua sendo imperioso o esforço para a ampliação do rol de refugiados na Convenção da ONU e dos instrumentos de salvaguarda das populações refugiadas, não menos premente é a necessidade de incremento do direito internacional para prevenir e punir Chefes de Estado que diuturnamente dão causa a esses números.
Se até o fim de Segunda Guerra Mundial a perda da imunidade desses governantes era impensável, o direito internacional penal rompeu definitivamente esse paradigma e ainda pode ir além, em busca de um objetivo aparentemente intangível: o de que todo Chefe de Estado causador doloso de uma situação de refúgio possa ser responsabilizado, seja por uma jurisdição interna, seja por uma jurisdição internacional.

27
Março
2024
O PAPEL DAS CORTES REGIONAIS DE DIREITOS HUMANOS NA PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE
O fim da Segunda Guerra Mundial foi um contexto de grande desenvolvimento do direito internacional. De um lado, em 1945, com a Carta de São Francisco, nasce o sistema da ONU e seu órgão jurisdicional, a Corte Internacional de Justiça. Na sua esteira são firmados tratados internacionais importantes, especialmente em matéria de direitos humanos – as chamadas Core Conventions. De outro lado, é também nesse cenário que são inaugurados dois dos sistemas regionais de proteção aos direitos humanos: o interamericano, com a Carta de OEA e a declaração americana de direitos humanos, de 1948, e o europeu, com a fundação do Conselho da Europa em 1949 e com a convenção europeia de direitos humanos, de 1950.
Nesse período histórico, os textos internacionais visavam proteger essencialmente direitos individuais, os denominados direitos civis e políticos, tão violentados que foram pelo conflito armado e pelo holocausto nazista. Da leitura dessas convenções, em regra, não se vislumbra a busca por uma maior proteção a direitos difusos, como é o caso do meio ambiente. A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 não foge a essa regra.
Até esse momento, os textos internacionais praticamente não voltam a sua atenção para a tutela ambiental. É precisamente esse um dos motivos por que o meio ambiente não figura como direito digno de proteção nas convenções americana e europeia de direitos humanos e na grande maioria dos textos internacionais.
A convenção europeia, por exemplo, trata apenas de direitos individuais e não faz nenhuma referência ao meio ambiente. O pacto de São José da Costa Rica, firmado em 1969, segue a mesma linha, embora sofra adequação em momento posterior, com a adoção do Protocolo de San Salvador, de 1988.
Foi precisamente com a Conferência das Nações Unidas para o meio ambiente e a Declaração de Estocolmo de 1972 que o direito internacional começou a lançar seus olhares para a necessidade da tutela ambiental. Esse movimento se fortaleceu nas décadas seguintes, muito especialmente com a realização das Conferências do Rio, em 1992, e de Joanesburgo, em 2002.
A Declaração de Estocolmo se tornará um divisor de águas sobre a matéria, tanto para o direito internacional quanto para os direitos domésticos. É a partir dela que a proteção ambiental passa a ser uma preocupação nesses ordenamentos, seja como um bem jurídico autônomo, seja como um bem jurídico derivado da necessidade de tutela de outros direitos, como o direito à vida e à saúde.
A Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, conhecida como Carta de Bajul, reflete essa tendência. Documento de base do sistema regional de direitos humanos fundado na África, foi aprovada pela Conferência Ministerial da Organização da Unidade Africana em janeiro de 1981 e consagrou, em seu artigo 24, o enunciado segundo o qual todos os povos têm direito a um meio ambiente geral satisfatório, propício ao seu desenvolvimento.
O sistema interamericano buscou suprir sua lacuna originária e promulgou, em 1988, o Procotolo de San Salvador, cujo artigo 11 elevou o meio ambiente a um direito autônomo a ser protegido. Estatuiu que toda pessoa tem direito a viver em meio ambiente sadio e a contar com os serviços públicos básicos para tanto. A fim de garantir esse direito, criou para os Estados a obrigação positiva de promover a proteção, a preservação e o melhoramento do meio ambiente.
Nesse mesmo contexto, no sistema europeu de direitos humanos, muito embora não tenha havido uma alteração da Convenção com vistas a incluir o meio ambiente no rol de direitos protegidos, o fato é que a jurisprudência da Corte Europeia de Direitos Humanos começou a ser construída dentro desse viés, com muitos avanços (e alguns retrocessos), mas com princípios bem estabelecidos acerca dos critérios para a concessão da tutela jurisdicional nos casos de violação ambiental.
Se por um lado as Convenções Americana e Africana de Direitos Humanos consagram essa tutela expressamente e se, de outro lado, inexiste uma declaração expressa na Convenção Europeia de Direitos Humanos no sentido de que o direito a um meio ambiente saudável é uma condição para o gozo dos demais direitos, o fato é que o seu órgão jurisdicional busca garantir essa proteção, ainda que por vias transversas e ainda que o faça com alguns retrocessos.
Essa tutela foi permitida graças a um longo e árduo trabalho para o qual colaboraram diversos atores dos sistemas regionais de proteção dos direitos humanos, a começar pelas vítimas de graves violações causadas por danos ambientais, que gradativamente impuseram às Cortes a necessidade de tecer o debate. Em última análise, pouco a pouco uma construção importante passou a ser protagonizada também pelos juízes internacionais, muito especialmente em matéria de danos ao meio ambiente.
Essa construção permitiu chegar-se ao entendimento de que graves danos ambientais, desde que violadores de direitos previstos convencionalmente, possuem o condão de engendrar a responsabilidade do Estado pelo descumprimento de deveres internacionalmente estabelecidos.
Pouco a pouco, portanto, cresce essa construção jurisprudencial sobre temas relevantes como o aquecimento global, a poluição, o tratamento de resíduos sólidos e os direitos das populações originárias de permanecerem em harmonia com suas terras.
Quem ganha com isso? Certamente que todos nós e, sobretudo, ganham ainda mais as futuras gerações.