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DANIELE GOMES DE MOURA é mestre em Direito Público e Evolução Social (UNESA-RJ). Auxiliar de pesquisa do Projeto de Pesquisa "Genetização do Parentesco, adoção e o impacto na questão da infância e adolescência no município do Rio de Janeiro - coordenação Alessandra Rinaldi". Pós em Docência Superior (UGF) e mestrado em direito civil e penal da Universidade Livre de Bruxelas (ULB 2019-2021).​

E-mail: danielegdemoura@icloud.com

Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8286775233451878

04
Setembro
2024

Os migrantes climáticos e o vazio jurídico relativo às pessoas em deslocamento forçado: o problema está na ausência de legislação?

 

O ato de deslocar-se, tanto interno quanto externamente, não é um movimento da atualidade, mas tem se apresentado, cada vez mais, como um desafio para as atuais e futuras gerações, em especial pelo aumento dos fatores que forçam o ato migratório.

No passado, os fenômenos migratórios, estavam frequentemente interligados à questões relacionadas à fatores econômicos, políticos, sociais e demográficos. No entanto, além dos fatores citados, outros foram surgindo, tais como: fatores ambientais, de saúde, tecnológicos e etc. Estes fatores adicionais apresentam-se, cada vez mais, como modificadores das dinâmicas globais e regionais, redefinindo de forma significativa os movimentos migratórios ao criarem outras formas de deslocamento.

Dentro destas novas formas de deslocamento encontram-se os migrantes climáticos. Um dos problemas enfrentados pelos migrantes destas novas formas de deslocamento, em especial o migrante climático, é a ausência de legislação internacional, logo de proteção internacional.

A proteção internacional está vinculada a uma série de princípios e estruturas legais cuja finalidade é garantir segurança, bem-estar e dignidade aos indivíduos forçados a abandonarem seus lares.

No caso dos refugiados, existem os seguintes documentos internacionais: (i) a Convenção de 1951 sobre o Estatuto dos Refugiados e Protocolo de 1967 e (ii) Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes. Os primeiros são a base do sistema de proteção dos refugiados e o segundo visa estabelecer uma proteção adicional ao individuo que teme ser torturado ou submetido a tratamento cruel ou degradante caso retorne ao país de onde foi forçado a fugir.

De forma contrária, para o migrante climático, conforme dito, não há legislação específica. O vazio jurídico relacionado aos migrantes climáticos não deveria ser visto como um impedimento ao direito de proteção internacional. Infelizmente a ausência de definição e de legislação acaba empurrando este grupo de pessoas para uma espécie de limbo, vejamos o caso Teitiota.[1]

Ioane Teitiota, cidadão do Kiribati, país que se encontra no Pacífico e com alerta de desaparecimento pelo aumento dos níveis do mar, solicitou proteção internacional. O pedido de asilo foi rejeitado com base no argumento que as condições adversas enfrentadas por Teitiota e sua família no Kiribati não eram ameaças diretas a sua vida ou sua liberdade, motivo pelo qual desconsideraram o pedido de proteção com base na Convenção de 1951, pois compreenderam que, no caso do refugiado, este teria sua vida e liberdade diretamente ameaçadas pelas condições extremas de violência e perseguição.

A decisão dos Tribunais fixou-se no conceito legal de refugiado, uma interpretação literal do dispositivo legal. Por óbvio que o conceito de refugiados e migrantes climáticos são diferentes. Porém, no que se relaciona aos motivos que os forçam a saírem de seus países, a mola propulsora que os fazem enfrentar as adversidades do caminho migratório é a mesma, a sobrevivência.

O direito de sobrevivência é parte do direito à vida. Garantido em vários documentos internacionais, tais como a Declaração dos Direitos Humanos (art. 3) e Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 6). Constituído de dois pilares: (i) direito à dignidade humana e (ii) direito à segurança básica. Inclusive, os motivos de garantir proteção internacional aos refugiados, ancora-se nestes pilares.

É sabido por todos, inclusive pelos Tribunais Internacionais, os problemas do Kiribati, problemas estes que forçam os indivíduos a se deslocarem internamente, como a invasão das águas. Estes problemas afetam diretamente o direito mínimo de sobrevivência de seus habitantes.

É tanto que, parte das ilhas, antigamente habitadas, hoje estão submersas pelas águas e, por esta razão, invasão das águas do mar, parte das terras estão improdutivas e os mananciais de água doce contaminados. Sem terra suficiente para plantar e água potável para consumo, a vida no Kiribati está ameaçada, forçando seus habitantes a migrarem.

A decisão deveria ter levado em consideração a razão central que impulsiona o individuo forçado a abandonar suas casas, ou seja, a sobrevivência. Tanto migrantes climáticos quanto refugiados enfrentam desafios comuns relacionados à sobrevivência e ao deslocamento forçado. Sendo importante garantir a ambos proteção e suporte adequados.

Logo, a ausência de legislação não deveria ser o motivo para recusa de proteção internacional, haja vista os inúmeros documentos que reconhecem o direito de um individuo à buscar condições mínimas de sobrevivência. Fora que, segundo as próprias regras de direito internacional, em caso de ausência de legislação, é permitido o uso dos meios de colmatação, como a analogia. Segundo o dicionário, analogia é “uma figura de linguagem que compara duas coisas diferentes, mas que possuem características em comum.”[2]

Refugiados e migrantes são diferentes no que se relaciona aos motivos que os forçam a migrar, porém o núcleo central comum é a sobrevivência. A busca pela sobrevivência atribuiu a ambas as questões relacionadas à vulnerabilidade, inclusão, dignidade e outros. Ou seja, estão presentes todos os elementos necessários para fazer uso dos frameworks existentes[3], inclusive com o regime atribuído aos refugiados.

E neste caso não existe somente a Declaração de 1951, outros documentos internacionais poderiam ser utilizados para o vazio jurídico existente sobre os migrantes climáticos, tais como: (i) as Diretrizes da ONU para os deslocados internos, (ii) a Declaração Universal dos Direitos Humanos, (iii) o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, (iv) a Convenção-Quadro das Nações Unidas Sobre Mudança do Clima e Acordo de Paris, (v) entre outros.

O núcleo central do debate deveria concentrar-se em cima do direito que estes grupos visam assegurar, o direito de sobrevivência. Para tanto é preciso uma abordagem abrangente com objetivo de integrar o direito de sobrevivência com os direitos de proteção, visando assegurar aos indivíduos forçados a se deslocarem acesso à assistência humanitária, proteção legal e integração social no país de acolhimento.

Negar proteção aos migrantes climáticos com base no argumento de ausência de legislação específica não é justificável, especialmente pelo volume de documentos existentes. Fora que, a decisão baseada no conceito de refugiados, por óbvio, não se aplicaria aos migrantes climáticos, pois conceitualmente são grupos distintos. A decisão dos Tribunais não foi inovadora, mostrando a necessidade de uma interpretação holística dos casos, bem como de adaptar e expandir as abordagens jurídicas.

 

[1] ACNUR, Decisão do comitê de direitos humanos da ONU sobre mudança climática da sinal de alerta, diz ACNUR. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/2020/01/24/decisao-do-comite-de-direitos-humanos-da-onu-sobre-mudanca-climatica-da-sinal-de-alerta-diz-acnur/. Acesso em: 30 de agosto de 2024.

[2] Enciclopédia Significados, Analogia. Disponível em: https://www.significados.com.br/analogia/. Acesso em: 31 de agosto de 2024.

[3] G4Educação, Framework. Disponível em: https://g4educacao.com/glossario/significado-framework#:~:text=O%20termo%20%E2%80%9CFramework%E2%80%9D%20pode%20ser,como%20em%20rela%C3%A7%C3%A3o%20%C3%A0s%20a%C3%A7%C3%B5es.. Acesso em: 1 de setembro de 2024.

Imagem disponível em: <https://www.rfi.fr/br/europa/20200925-falta-de-status-jur%C3%ADdico-internacional-fragiliza-situa%C3%A7%C3%A3o-de-refugiados-clim%C3%A1ticos>. Acesso em 04 set. 2024. 

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