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Colunistas do Lepadia

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REFLEXÕES SOBRE A DECISÃO DA CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA SOBRE MEDIDAS PROVISÓRIAS NO CASO RÚSSIA V. UCRÂNIA E SEUS LIMITES DE JURISDIÇÃO
 

Brenda Maria Ramos Araújo

Graduação em Direito pela PUC-Rio, mestrado em Direito Internacional pela UERJ, doutoranda em Direito Internacional pela UERJ, bolsista CAPES, pesquisadora do LEPADIA e do GPDI. E-mail: brendamariara@gmail.com

Corte Internacional de Justiça

No dia 24 de fevereiro de 2022, a Rússia iniciou uma operação especial militar contra a Ucrânia. Dois dias depois, a Ucrânia, em 26 do mesmo mês, entrou na Corte Internacional de Justiça contra a Rússia, requerendo, inclusive, medidas provisórias. Essa ação seria algo natural em sociedades nacionais, mas ela adquire contornos peculiares na comunidade internacional. A jurisdição da Corte Internacional de Justiça não é compulsória. Só pode ser estabelecida com o consentimento de ambos Estados participantes de determinado conflito fixado em um acordo especial. Sabendo que a Rússia não foi procurada pela Ucrânia e não consentiu em ser julgada, surge esta questão: a Ucrânia poderia acionar a Corte Mundial sem o consentimento da Rússia?

Existem duas maneiras reconhecidas pelo artigo 36 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça de um Estado levar outro a julgamento por consentimentos prévios: declarações facultativas de aceitação de jurisdição compulsória e assuntos especialmente previstos em tratados. A Ucrânia utilizou a segunda maneira para ingressar na Corte com base no artigo 9° da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio: As controvérsias entre as Partes Contratantes relativas à interpretação, aplicação ou execução da presente Convenção bem como as referentes à responsabilidade de um Estado em matéria de genocídio ou de qualquer dos outros atos enumerados no Artigo III, serão submetidas à Corte Internacional de Justiça, a pedido de uma das Partes na controvérsia. Ocorre que os pedidos ucranianos, provisórios e referentes ao mérito, parecem exceder a matéria da Convenção contra o Genocídio. Essa convenção, em nenhum momento, regulamenta o uso da força, mas o pedido ucraniano questiona a legalidade da intervenção armada realizada pela Rússia. Mesmo assim, no dia 16 de março de 2022, a Corte decidiu favoravelmente ao pedido de medidas provisórias ao reconhecer que possuía, prima facie, jurisdição para o mérito da causa, estabelecendo que a Rússia deve suspender as operações militares na Ucrânia como medida provisória. Frente a essa aparente contradição, é necessário expor os fundamentos dados pela Corte para confirmar sua jurisdição, prima facie, para o mérito do conflito.

Ao analisar as trocas entre as partes em mecanismos bilaterais e multilaterais, a Corte chegou à conclusão de que havia uma disputa entre as partes sobre a ocorrência de genocídio nas regiões de Donetsk e Luhansk. Desde 2014, a Rússia teria feito diversas acusações do cometimento de atos de genocídio por autoridades ucranianas nessas regiões. Com base no direito russo, foi instaurados procedimentos criminais contra oficiais ucranianos para examinar as alegações de atos de genocídio nesses territórios com base na Convenção contra o Genocídio. No comunicado da Rússia ao Conselho de Segurança sobre a base legal da operação especial militar, é invocado o artigo 51 da Carta da ONU para o exercício de legítima defesa para proteger os habitantes dessas regiões contra atos de genocídio praticados já por oito anos. De igual maneira, representantes russos explicaram na União Europeia que a operação visava a imposição da paz para desnazificar a Ucrânia, ressaltando que o termo genocídio conforme o Direito Internacional poderia ser utilizado na situação. A Ucrânia, por sua vez, teria expressado em diversas ocasiões que não reconhece as alegações russas sobre o cometimento de atos de genocídio.

Além de existir essa disputa sobre o cometimento de atos de genocídio, a Corte considerou que havia uma segunda disputa entre as partes relacionada a essa Convenção. Enquanto a Ucrânia defendida que não seria possível utilizar a força para punir atos de genocídio com base no artigo 8° da Convenção, a Rússia estaria utilizando o artigo 1° da mesma Convenção para fundamentar essa sua ação militar. Não obstante a Rússia ter afirmado estar atuando em legítima defesa a pedido das regiões de Luhansk e Donetsk, que são reconhecidas pela Rússia como Estados, para combater alegados atos de genocídio, a Corte achou plausível a posição ucraniana.

A Ucrânia argumenta que a Rússia teria agido com base no artigo 1° da Convenção contra o Genocídio, empregando o uso da força para punir atos de genocídio que estão sendo cometidos: “As Partes Contratantes confirmam que o genocídio quer cometido em tempo de paz ou em tempo de guerra, é um crime contra o Direito Internacional, que elas se comprometem a prevenir e a punir.”  Ela defende que a Rússia partiu dessa obrigação internacional para iniciar o exercício da força, mas não respeito a Convenção em seu artigo 8°:

Qualquer Parte Contratante pode recorrer aos órgãos competentes das Nações Unidas a fim de que estes tomem, de acordo com a Carta das Nações Unidas, as medidas que julguem necessárias para a prevenção e a repressão dos atos de genocídio ou em qualquer dos outros atos enumerados no Artigo III.

Dessa forma, a Corte conclui que existem duas disputas entre as partes. A primeira é referente a certos atos cometidos pela Ucrânia, e se eles poderiam ser considerados como genocídio. A segunda é referente ao uso da força pela Rússia para prevenir e punir alegados atos de genocídio, e se essa seria uma medida permitida pela Convenção contra o Genocídio. Sobre a alegação da Rússia de que a base jurídica é o artigo 51 da Carta das Nações Unidas e o direito costumeiro, a Corte diz que é possível que alguns atos ou omissões criem disputas que abrangem mais de um tratado.

Com o devido respeito à posição da Corte, mesmo considerando que foi realizado um exame prima facie de jurisdição, parece inegável que a Rússia atuou com base no artigo 51 da Carta da ONU ao empregar o uso da força. A Rússia em nenhum momento demonstrou compreender que a Convenção contra o Genocídio permitiria o uso da força com base na obrigação estipulada por seu artigo 1°. Parece ter influenciado a decisão da Corte sobre o assunto o fato de a ação russa ser um incontestável desrespeito às obrigações estabelecidas na Carta da ONU e no Direito Internacional em geral. Dessa forma, aparenta ter pesado na Corte o seu dever de manter a paz e segurança internacionais e de solucionar disputas pacificamente. Somado a esse dever puro, ainda havia grande responsabilidade perante a comunidade internacional. A audiência pública do dia 7 de março de 2022 foi transmitida ao vivo pelo canal da ONU no YouTube, alcançando mais de 83 mil visualizações e contando com mais de 700 comentários. Além disso, o vídeo também foi transmitido pelo canal de diversas mídias, o que, em certo, aumenta o número de visualizações e interações. A população mundial demonstrou estar engajada na atuação da Corte e esperançosa pela concretização do Direito Internacional.

Um dos comentários do vídeo que recebeu mais aceitação do público foi este: “I hope this will bring a speedy end to the senseless and atrocious acts of war perpetrated by the Russian President...” Existe uma inconfundível expectativa por parte da população mundial de que o Direito Internacional deve ser capaz de resolver esse tipo de disputa. O Estatuto da Corte Internacional de Justiça, no entanto, ainda é baseado em anseios do passado e restringe sua jurisdição.

A discussão sobre a obrigatoriedade de uso de soluções jurídicas para a resolução de conflitos é antiga, remontando à criação da Corte Permanente de Arbitragem em 1899. Nesse momento, ainda havia grande temor dos Estados em deixar juristas resolver atos que afetassem a honra ou a interesses vitais do Estado, como as guerras. De forma um pouco menos exacerbada, esses temores persistiram e permearam a redação do Estatuto da Corte Internacional de Justiça. Existem, contudo, sempre algumas pessoas que conseguem refletir para além das dinâmicas de poder de sua época. Ainda em 1907, quando Rui Barbosa representou o Brasil na Segunda Conferência de Paz da Haia, ao se discutir a obrigatoriedade de uso da arbitragem para a resolução de conflitos, o delegado brasileiro alertou que era fundamental incluir os casos de guerras de conquistas: “If, then, there is a bond that should in this day bind all the Governments whose existence rests upon right, it is the bond of a common resolution against the evil of conquest, ever on the horizon of the life of the peoples as a sign of misery and of desolation ”. De forma semelhante, nos dias atuais, aparece o Direito Internacional das Catástrofes.

O Direito Internacional das Catástrofes, idealizado por Sidney Guerra, compreende que situações que envolvem catástrofes internacionais exigem uma abordagem diferenciada, pautada pelo princípio da não-indiferença, pela ação solidária dos Estados. A comunidade internacional precisa reconhecer o seu destino compartilhado e estabelecer regulamentações capazes de enfrentar situações de catástrofes. Não aparenta ser por outro motivo que Francisco Rezek reconhece o Direito Internacional das Catástrofes como uma obra inestimável em nosso universo doutrinário. Em casos de guerra, em resposta aos anseios da população mundial, parece ser a hora de criar uma instituição judicial com jurisdição obrigatória. Enquanto isso não for possível, ficamos reféns das palavras do juiz Xue Hanqin sobre a decisão de medidas provisórias da Corte Internacional de Justiça deste caso: “When the situation on the ground requires urgent and serious negotiations of the Parties to the conflict for a speedy settlement, the impact of this Order remains to be seen.”

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