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Colunistas do Lepadia

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O MEIO AMBIENTE NA CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS: UM SISTEMA SUI GENERIS DE PROTEÇÃO

Fernanda Tonetto

Doutora em Direito pela Université Paris II Panthéon-Assas; Doutora e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Mestre em Integração Latino-Americana pela Universidade Federal de Santa Maria; Procuradora do Estado do Rio Grande do Sul nos Tribunais Superiores.

E-mail: fernandafigueiratonetto@gmail.com

         O fim da Segunda Guerra Mundial foi um contexto de grande desenvolvimento do direito internacional. De um lado, em 1945, com a Carta de São Francisco, nasce o sistema da ONU e seu órgão jurisdicional, a Corte Internacional de Justiça. Na sua esteira são firmados tratados internacionais importantes, especialmente em matéria de direitos humanos – as chamadas Core Conventions. De outro lado, é também nesse cenário que são inaugurados dois dos sistemas regionais de direitos humanos: o interamericano, com a Carta de OEA e a Declaração Americana de Direitos Humanos, de 1948, e o europeu, com a fundação do Conselho da Europa em 1949 e com a Convenção Europeia de Direitos Humanos, de 1950.

        Nesse momento histórico, os textos internacionais visavam proteger essencialmente direitos individuais, os denominados direitos civis e políticos, tão violentados que foram pelo holocausto nazista. Da leitura dessas convenções e declarações, em regra, não se vislumbra a busca por uma maior proteção a direitos difusos como o meio ambiente.

      Com a Conferência das Nações Unidas para o meio ambiente e a Declaração de Estocolmo de 1972, seguidas pelas Conferências do Rio de 1992 e de Joanesburgo de 2002, o direito internacional gradativamente começa a lançar sua tutela para a proteção ambiental.

      Nesse mesmo contexto, no sistema europeu de direitos humanos, muito embora não tenha havido uma alteração da Convenção com vistas a incluir o meio ambiente no rol de direitos protegidos, o fato é que a jurisprudência da Corte Europeia de Direitos Humanos começa a ser construída dentro desse viés.

     Assim, apesar de a Convenção até hoje não possuir uma previsão específica de proteção ao meio ambiente, os precedentes jurisprudenciais do sistema europeu evoluíram. Aliás, é digno de nota o fato de que a Corte Europeia de Direitos Humanos, nas últimas décadas, tenha feito uma interpretação viva da convenção em muitas matérias não previstas especificamente por ela, e isso não apenas em matéria ambiental, mas também em relação a outros direitos, como liberdade de expressão, liberdade religiosa, direitos sexuais e escravidão urbana.

         O que é bem específico, porém, é que, ao contrário dos demais sistemas regionais, do interamericano e do africano, que possuem previsão expressa (muito embora o interamericano o tenha feito tardiamente por meio de protocolo), o sistema europeu efetiva a proteção do meio ambiente por vias transversas, quando uma degradação ambiental acarretar uma lesão a um dos direitos individuais previstos na convenção: na prática, em casos de lesão ao direito à vida (artigo 2) ou ao direito ao respeito pela vida privada e familiar (artigo 8), ou ainda por violação do direito a um processo equitativo (artigo 6) ou a um recurso efetivo (artigo 13).

        Com relação a danos ambientais que acarretem violação do direito à vida, a Corte Europeia edificou muito bem uma teoria das obrigações positivas e negativas dos Estados, tecendo importantes balizas a respeito do dever do Estado de se abster de praticar ações contrárias ao direito à vida e do dever de tomar providências concretas para a sua proteção.

        A teoria é explicitada especialmente a partir do julgamento do caso L.C.B. vs. Reino Unido, de 1998. A requerente era uma mulher que alegava ter contraído leucemia em decorrência da exposição de seu pai à radiação, na década anterior ao seu nascimento, durante a realização de testes nucleares, quando servia ao exército britânico. Muito embora a ação tenha sido julgada improcedente em razão da ausência de prova do nexo causal, a teoria das obrigações positivas e negativas dos Estados em caso de dano ambiental ganhou ênfase na jurisprudência da CEDH.

        Alguns anos mais tarde, quando do julgamento do caso Oneryildiz vs. Turquia, em 2004, a Corte concluiu pela existência de violação de uma obrigação positiva e pela consequente responsabilidade do Estado pelas mortes decorrentes de um dano ambiental advindo da explosão em depósito de lixo municipal, que matou dezenas de pessoas que moravam ilegalmente no local.

      Esse precedente volta a ser aplicado no caso Budayeva e outros vs. Rússia, de 2008, que versou sobre mortes decorrentes de deslizamento de terras provocado pela chuva. Aplicando a teoria das obrigações positivas, a Corte concluiu que o Estado russo havia falhado no seu dever de informar a população local a respeito do risco a que estava exposta, bem como na obrigação de colocar em prática um plano de evacuação efetivo.

        De forma ainda mais recorrente, a Corte Europeia tem conferido proteção ao meio ambiente pela via da tutela do respeito à vida privada e familiar, e à moradia, previsto no artigo 8 da convenção. A CEDH utiliza, em diversos julgados, uma interpretação ampla a respeito das situações capazes de impedir o indivíduo de aproveitar sua vida privada e familiar, ou sua moradia, o que naturalmente se estende a situações decorrentes de danos ambientais.

        Em muitos desses casos julgados, no entanto, a Corte abre espaço para a aplicação da margem de apreciação nacional, como o fez, não sem críticas, no famoso caso Powell e Rayner vs. Reino Unido, de 1990, no qual concluiu que o incômodo gerado pelo tráfego aéreo e o barulho causado pelo aeroporto de Heathrow a moradores vizinhos eram riscos toleráveis que se encontravam dentro da margem de discricionariedade estatal.

       O mesmo entendimento foi utilizado em outros julgamentos que versavam sobre poluição sonora gerados pelo fluxo de aviões em aeroportos, como nos casos Hatton e outros vs. Reino Unido, de 2001 (muito embora, nesse caso, a Corte tenha condenado o Estado por violação ao artigo 13) e Flamenbaum vs. França, de 2012.

        Se é bem verdade que a teoria da margem de apreciação nacional serviu de fundamento para a preservação dos interesses econômicos envolvidos, em outras circunstâncias foi ela igualmente utilizada como fundamento para a condenação do Estado, como no julgamento do caso Moreno Gómez vs. Espanha, de 2004: apreciando a legislação nacional espanhola, o Estado foi condenado em virtude da poluição sonora gerada por boates, sob o entendimento de que houve, por parte das autoridades locais, tolerância e contribuição ao descumprimento das regras sobre o horário funcionamento e os níveis de ruído noturno.

      Dois pesos e duas medidas, certamente, mas tudo sob a égide da teoria da margem de apreciação nacional, que garante um alto grau de discricionariedade ao juiz internacional.

        Na grande maioria dos julgamentos, porém, a Corte Europeia posicionou-se em consonância com o entendimento amplo de violação ao artigo 8, exercendo um importante papel de tutela efetiva do meio ambiente, ainda que de forma transversal. Podem ser citados, por emblemáticos, os casos López Ostra vs. Espanha, de 1994 (estação de tratamento de resíduos líquidos e sólidos), Dzemyuk vs. Ucrânia, de 2004 (instalação de um cemitério, que acabou poluindo os reservatórios de água subterrâneos com níveis excessivos de bactérias), Brânduse vs. Romênia, de 2009 (odores emanados de um aterro sanitário situado a poucos metros de um quartel da polícia, afetando a qualidade de vida de um preso que ali se encontrava), além do caso Cordella e outros vs. Itália, de 2019 (poluição atmosférica gerada por uma siderúrgica).

     Ainda que existente em menor número na jurisprudência da Corte, as violações aos artigos 6 e 13 são também reconhecidas em matéria de dano ambiental, como mostra o julgamento do caso Bor vs. Hungria, de 2013, referente ao aumento do nível de ruídos oriundos de uma estação ferroviária após a substituição dos motores utilizados nos trens, perturbando moradores vizinhos. A CEDH concluiu que a República da Hungria violara os direitos à razoabilidade dos prazos processuais e à vida privada e familiar do requerente, além de condenar o Estado pelos altos níveis de poluição sonora de forma a atingir diretamente a população que morava na região, em uma flagrante violação também do artigo 8.

        O caso é emblemático porque reforça o precedente jurisprudencial da Corte acerca da irrelevância do quantum de dano ambiental necessário para que haja violação do direito à vida privada e familiar. Para os julgadores, o que importa é aferir o efetivo dano ao direito previsto na convenção.

        Esse entendimento foi sedimentado no julgamento do caso Fadeyeva vs. Rússia, de 2005 (replicado no julgamento do caso Ledyayeva e outros vs. Rússia, de 2007), que tratou das emissões tóxicas e ruídos provenientes de um centro produtor de aço, ao redor do qual as autoridades russas haviam estabelecido uma área em que não deveria haver habitações, regra que na prática não foi implementada.

        A decisão tem o mesmo fio condutor no julgamento do caso Tätar vs. Romênia, de 2009, que versou sobre um acidente nas instalações de uma mina de outro e que levou à liberação de água contaminada para o meio ambiente local. A Corte reconheceu a violação pelo Estado não apenas de sua obrigação positiva de avaliar os riscos e as consequências das atividades perigosas desenvolvidas pela mina, mas também na de manter o público devidamente informado.

      Dessa análise, é possível concluir que na jurisprudência da Corte Europeia de Direitos Humanos inexiste uma obrigação geral e autônoma de proteção do meio ambiente, porquanto aspectos relativos ao dano ambiental só são considerados quando há relação direta com a afetação da vida privada ou familiar do indivíduo ou outros direitos individuais consagrados na convenção europeia de direitos humanos.

       De outro lado, ainda que seja feita transversalmente, o fato é que quando uma degradação ambiental acaba por ofender esses direitos, a Corte cumpre com um importante papel de reprimir o dano por meio da condenação dos Estados à indenização dos lesados, além de muitas vezes determinar a correção da omissão ou da ação estatal, de forma a prevenir novas degradações.

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