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Colunistas do Lepadia

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O IMPERECÍVEL LEGADO DE CANÇADO TRINDADE PARA O DIREITO INTERNACIONAL

Fernanda Tonetto

Doutora em Direito pela Université Paris II Panthéon-Assas; Doutora e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Mestre em Integração Latino-Americana pela Universidade Federal de Santa Maria; Procuradora do Estado do Rio Grande do Sul nos Tribunais Superiores.

E-mail: fernandafigueiratonetto@gmail.com

       Antônio Augusto Cançado Trindade deixa um legado imperecível para o direito internacional e certamente será estudado como um de seus grandes divisores de águas, assim como o foi, no passado, a obra de Hugo Grócio[1] à época do Law of Nations e da Paz de Vestfália. Afinal, o direito internacional não apenas é resultado da história e da evolução dos povos e das Nações, mas também fruto de grandes pensadores.

        O direito internacional nasceu na era do fortalecimento dos Estados nacionais, calcado em pilares como os princípios da soberania e da não-intervenção. Há algumas décadas, essa mesma história vem sofrendo mudanças a partir de um redesenho da sociedade internacional contemporânea.

   Nesse caminho evolutivo, o direito internacional humanizou-se e transmutou-se do conservadorismo para o cosmopolitismo, do voluntarismo para a supremacia de valores, da centralidade dos Estados para a centralidade dos seres humanos.

        Cançado Trindade foi um dos principais teóricos (e ativistas) de um novo (e necessário) direito internacional, além de um grande crítico de seu conteúdo voluntarista[2].

        O mestre não se conformava com a ineficiência do modelo de soberania estatal e, sempre que tinha oportunidade, se referia ao fato de que o ordenamento internacional tradicional, marcado pelo predomínio das soberanias estatais e exclusão dos indivíduos, não foi capaz de evitar a intensificação da produção e uso de armamentos de destruição em massa, e tampouco as violações maciças dos direitos humanos perpetradas em todas as regiões do mundo, e as sucessivas atrocidades de nosso século, inclusive as contemporâneas, - como o holocausto, o gulag, seguidos de novos atos de genocídio, e.g., no sudeste asiático, na Europa central (ex-Iugoslávia) e na África (Ruanda). Tais atrocidades têm despertado a consciência jurídica universal para a necessidade de reconceitualizar as próprias bases do ordenamento internacional.”[3]

      É verdade que a modificação do mundo, especialmente a partir das duas grandes guerras mundiais, rompeu definitivamente com os postulados desse tão criticado direito internacional clássico e pavimentou o caminho para se pensar um novo direito internacional, voltado para a proteção do ser humano. Era o que Cançado Trindade chamava de “o novo direito das gentes”.

         Cançado Trindade, seja na sua colossal obra doutrinária, seja enquanto magistrado internacional, propôs a prevalência de um direito internacional que levasse em consideração o elevado valor atribuído aos direitos humanos, ensejando a busca de uma “comunidade humana universal” e do que ele denominava “consciência jurídica universal”, que seria, segundo ele, a fonte máxima do direito internacional e o substrato para a sua supremacia.

         A proteção do ser humano como fim último era, aliás, um Leitmotiv do pensamento do Professor Cançado. De tantas passagens suas a esse respeito, extrai-se, por todas, a seguinte: “El reconocimiento de los individuos como sujetos tanto del derecho interno como del Derecho Internacional representa una verdadera revolución juridica, a la cual tenemos el deber de contribuir. Trátase, en última instancia, de capacitar cada ser humano para estar plenamente consciente de sus derechos, para – cuando necesario – enfrentar por sí mismo la opresión y las injusticias del orden establecido, y para construir un mundo mejor para sus descendientes, las generaciones futuras.”[4]

        Nesse novo paradigma, a importância das Cortes Internacionais também não passou despercebida por Cançado Trindade, sobretudo quando se referia à importância da ampliação e sofisticação do capítulo da responsabilidade internacional dos Estados[5]. Essa mudança, a bem da verdade, não estava apenas nas suas palavras: enquanto juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos, protagonizou a era mais vanguardista de uma jurisprudência voltada à proteção dos indivíduos e à responsabilização dos Estados por violações massivas de direitos humanos; como juiz da Corte Internacional de Justiça, proferiu votos memoráveis (muitas vezes dissidentes) e iniciava uma nova fase na jurisprudência do órgão jurisdicional máximo das Nações Unidas.

        Esse avanço parece ter sido interrompido com sua partida. Certamente, a Corte se ressentirá de seus passos largos, progressistas e de seu inconformismo e ficará mais estéril sem as suas luzes.

        Mas se, por um lado, o mundo perdeu um de seus maiores juristas, por outro lado, a humanidade herdou as imortais palavras que brandavam pela necessidade de reconstrução humanista do direito internacional. O Mestre, que tanto gostava de falar nas futuras gerações, a elas lega um patrimônio imperecível, que eterniza o imperativo de realização de valores comuns superiores, da titularidade de direitos do ser humano, da garantia coletiva de sua realização, do caráter objetivo das obrigações de proteção e da supremacia dos direitos humanos universais[6].

 

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[1]     GROTIUS, Hugo. Le droit de la guerre et de la paix. Tome Premier. Traduction par Jean Barbeyrac. Amsterdam, Chez Pierre de Coup, 1724.

[2] CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. O direito internacional em um mundo em transformação. Rio de Janeiro/São Paulo: Renovar, 2002, p. 184.

[3] CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. A humanização do direito internacional. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 111.

[4] CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. A humanização do direito internacional. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 122.

[5] CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Os Tribunais internacionais contemporâneos. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2013, p. 47.

[6] CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. O direito internacional em um mundo em transformação. Rio de Janeiro/São Paulo: Renovar, 2002, pp. 1076-1077.

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