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Colunistas do Lepadia

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O ENGAJAMENTO DE GRUPOS ARMADOS NÃO-ESTATAIS COM O DIREITO INTERNACIONAL HUMANITÁRIO EM CONFLITOS ARMADOS NÃO-INTERNACIONAIS

Adria Fabricio

Graduada em Direito pela UFMS e Mestranda em Direito Internacional pela UERJ. Profissional Humanitária, membro e facilitadora do Centre of Competence on Humanitarian Negotiation (CCHN) e membro da Equipe de Resposta Nacional da Cruz Vermelha Brasileira. Pesquisadora em Direito Internacional Humanitário (DIH) e em Direito Internacional das Catástrofes no LEPADIA/UFRJ e Professora da linha de DIH no GPDI/UFRJ.

E-mail: adriasfs@outlook.com

Profundamente fascinantes são os grupos armados não-estatais, que sob a perspectiva analítica do Direito Internacional e, mais particularmente, do Direito Internacional Humanitário, desafiam a sistemática do poder e da ordem composta pelas ficções jurídicas que criamos enquanto humanidade, que não mais respondem adequadamente aos desafios encontrados em campo de batalha. Sob o seu imposto véu de legitimidade, os non-state armed groups (NSAG) nos convidam a refletir e a contestar as estruturas jurídicas permeadas pela moral e pela política através das suas lentes, do direito conformado por suas necessidades e construído para servir aos seus propósitos.

As dinâmicas de poder e de controle desenvolvidas entre os grupos armados e as comunidades sob controle territorial revelam, por vezes, complexos ordenamentos estabelecidos em ordens jurídicas paralelas e independentes da estatal, ou mesmo, da ordem internacional. Os grupos armados costumam agir em circunstâncias estatais lacunosas, preenchendo espaços em que o Estado está ausente, ineficiente ou inoperante, particularmente no que tange ao provimento de serviços essenciais para a população ou atuando na implementação de mecanismos análogos à segurança e à justiça para as suas estruturas próprias de poder.

A sua natureza e características costumam ser diversas e, considerando que o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) identificou existirem cerca de 600 grupos armados na atualidade que recorrem à violência como meio para atingirem os seus objetivos, vislumbram-se desde pequenos amotinamentos organizados em gangues ou milícias armadas, até complexas e estruturadas organizações que atuam a nível nacional e internacional. Há, ainda, grupos armados que exercem total governança e controle territorial sobre largas extensões nacionais, cuja configuração é fundamentada em delineamentos sociais, políticos e jurídicos estruturados e funcionais alheios à ordem jurídica majoritária.

De fato, a falta de diálogo entre os vários sujeitos das hostilidades e a marginalização dos grupos armados paraestatais inviabilizam a própria conformação do regramento humanitário gerando, consequentemente, ineficácia. Independentemente de suas motivações ou características, as organizações humanitárias que atuam em conflitos armados devem dialogar com todas as partes, inclusive com os NSAG, a fim de, por um lado, obter acesso a comunidades em sofrimento devido ao conflito que estejam sob o controle destes grupos armados e prover-lhes assistência alimentar e em saúde, por exemplo; e, por outro lado, trabalhar juntamente aos referidos grupos pelo compliance com as normas de Direito Internacional Humanitário.

Esse movimento de engagement busca aprimorar e fortalecer o DIH em campo e, portanto, faz parte das iniciativas das organizações voltadas a Generating Respect for IHL, Strenghtening IHL – motivações estas que reúnem as principais preocupações de profissionais humanitários e de jus-internacionalistas que, contra qualquer possibilidade de resignação, trabalham diariamente pelo aprimoramento da eficácia do Direito Internacional Humanitário e de outros marcos jurídicos protetivos aplicáveis a situações de conflito.

O engajamento com grupos armados não-estatais em direção à proteção de populações em sofrimento é, portanto, uma questão de necessidade humanitária fundamentada na neutralidade, na imparcialidade e na independência das organizações humanitárias. A triste realidade dos conflitos armados demonstra violações sem precedentes e de todas as ordens, causando devastação, morte e o padecimento de comunidades inteiras.

Nesse sentido, a área de behaviour studies e o movimento de influencing behaviour in armed conflicts voltados aos NSAG revela as chamadas sources of restraint ou roots of restraint e patterns of respect: fontes de restrição da violência e padrões de comportamento conformativos com o Direito Internacional Humanitário que fundamentam o compliance com as normas humanitárias internacionais. As fontes de restrição se referem a comportamentos, ações e decisões intencionalmente tomadas para limitar o uso da força e da violência por parte de um grupo armado não-estatal considerando a sua consciência humanitária de proteção. As fontes eficazes identificadas vão desde a integração das normas humanitárias aos sistemas disciplinares (códigos de conduta) dos grupos armados até a promoção das normas humanitárias em referência a crenças, costumes, tradições e práticas locais que manifestam fontes semelhantes de restrição à violência.

Em relação aos modelos traçados relacionados ao engajamento por meio da mudança comportamental, observou-se que: as violações do DIH envolvem processos sociais e individuais de desengajamento moral provocados por dois mecanismos principais, a saber, a justificação do comportamento e a falta de qualquer senso de responsabilidade; e que, em situações de conflito armado, os mecanismos dessa abdicação de responsabilidade são induzidos principalmente pela conformidade do grupo e pela obediência às ordens.

Assim, ao analisar as causas das violações de DIH, estas podem ser divididas em cinco grandes grupos: (a) incentivo ao cometimento de crimes de guerra; (b) definição de objetivos militares; (c) razões de oportunidade; (d) razões psicossociológicas; e (e) razões relacionadas ao indivíduo.

Quanto aos fatores psicossociológicos possivelmente reconhecíveis em qualquer Grupo Armado Não-Estatal, dividem-se em: (I) conformidade do grupo, (II) obediência à autoridade, (III) espiral de violência e (IV) desengajamento moral, conforme os estudos The Roots of Restraint in War e The Roots of Behaviour in War, do CICV.

De acordo com os resultados encontrados nestes estudos, o componente moral ou ético não se sustentar, enquanto a intenção de conformidade não significa uma atitude posterior em favor do cumprimento. O reconhecimento da universalidade dos valores humanitários também não contribui como esperado, enquanto elementos como autoridade, filiação grupal, hierarquia e desengajamento moral parecem exercer maior influência sob as atitudes de compliance com as normas humanitárias. Nessa perspectiva, as negociações e a diplomacia humanitária constituem pilares primordiais da prestação de assistência humanitária, da implementação de mecanismos protetivos e do cumprimento de normas humanitárias em conflitos armados.

A Diplomacia Humanitária, conforme a Federação Internacional da Cruz Vermelha (FICV), se trata de uma metodologia de transação e mediação de conflitos, que busca persuadir líderes decisórios a agir em respeito e com cuidado no que tange às pessoas mais vulneráveis, a fim de alinhar, na medida do possível, os seus comportamentos a sistemas protetivos de compliance, de modo a diminuir as causalidades. Nos conflitos armados não-internacionais, a diplomacia humanitária significa a transação com atores não-estatais em regra armados.

Aprofundando seu conceito, também é possível observar suas frações, seus elementos fundamentais, compondo a estrutura da entidade já adaptada à perspectiva em análise através de um exemplo de negociação: o diplomata humanitário que representa a organização com mandato, regulamento e red lines específicas; a contraparte (comandante militar, indivíduo responsável pelo checkpoint a ser atravessado ou tomador de decisão responsável pelos interesses do NSAG – detentor de poder para aquela negociação em particular) que deve ser persuadida quanto aos interesses da população vulnerável sob controle, visada ou isolada do acesso; e a população vulnerável, pessoas protegidas ou a própria comunidade afetada, objetivo final da atuação da organização humanitária e da preocupação e apreço do diplomata humanitário (para garantir o respeito ao DIH, a fim de proteger a vida e a dignidade e/ou o acesso para a prestação da assistência). Outrossim, é essencial compreender que – apesar de seu valor inestimável para a vida e para a dignidade humana ao longo de mais de um século e meio de existência, sem contar a aplicação do DIH Consuetudinário –, é impreciso e falacioso supor que as normas humanitárias alcançaram a universalidade.

Assim, o processo de engagement através das negociações e da diplomacia humanitária demonstram uma alternativa notadamente eficaz na prática para integrar as normas humanitárias (DIH) e outras normas provenientes de marcos normativos protetivos à jusdiversidade dos NSAG, por meio de um processo de internalização da legitimidade sem a necessidade da imposição da aplicação. O Centre of Competence on Humanitarian Negotiation (CCHN) define as negociações humanitárias como um conjunto de interações entre organizações humanitárias e partes de um conflito armado, bem como outros atores relevantes, com o objetivo de estabelecer e manter a presença dessas organizações em ambientes de conflito, garantindo o acesso a grupos vulneráveis e facilitando as atividades de assistência e de proteção.

As negociações humanitárias, segundo o CCHN, incluem um componente relacional focado em construir confiança com as contrapartes ao longo do tempo e um componente transacional focado em determinar e concordar com os termos específicos e a logística das operações humanitárias. Os negociadores humanitários, frontline humanitarian negotiators, desse modo, têm a oportunidade de acessar os NSAG e contemplar suas ordens jurídicas paralelas, as quais embasam a sua visão particular das circunstâncias.

Os negociadores terão, portanto, que manifestar a capacidade de construir um espaço comum compartilhado para a implementação de ferramentas de diálogo e cooperação com o objetivo de garantir um processo de incorporação da norma na dinâmica do Non-International Armed Conflict (NIAC) através da incorporação da linguagem, das motivações e dos valores dos NSAG, mesmo que as posições pareçam distantes ou, por vezes, diametralmente opostas. Fazer parte do grupo armado provoca despersonalização, favorecendo a diluição da responsabilidade individual. A divisão de uma comunidade em facções menores cria a ilusão do “outro”, causando a desumanização do inimigo. Todos são fenômenos sociais agravados ou não por fatores políticos transversais.

É nesse sentido que atestamos a importância de mecanismos alternativos para o aprimoramento da eficácia das normas humanitárias circunstâncias como as de um conflito armado não-internacional, em que, por vezes, é inviável determinar a responsabilização criminal internacional por crimes de guerra. Tais mecanismos de soft enforcement são chamados de alternative means of securing compliance. Dentre eles, se destacam a disseminação das normas de DIH, as medidas pacíficas tomadas por terceiros para a melhoria de aspectos relacionados à assistência ofertada às pessoas protegidas e à diminuição das hostilidades; além da atuação das organizações humanitárias enquanto entidades conciliadoras protetivas através dos métodos aqui apresentados, em especial a diplomacia humanitária e as negociações humanitárias.

Por fim, é interessante observar que as fontes de restrição diferem a depender da estrutura organizacional que os NSAG possuem. Por exemplo, em grupos armados altamente hierárquicos há sinais óbvios de disciplina como uniformes e saudações próprias; nesse caso, as principais fontes de compliance – ou de restrição de comportamentos não conformes – são as lideranças hierárquicas verticais. Nesses casos, as regras do grupo armado são transmitidas através de ideologias e doutrinas militares, reforçadas por meio de treinamentos, assim como pelo medo de punições.

Por outro lado, grupos armados descentralizados, os quais compõem majoritariamente a atualidade, embora lutem sob uma mesma nomenclatura, costumam ser formados por alianças de grupos menores de indivíduos; cada qual com o seu próprio comandante. Em regra, quanto mais um grupo é descentralizado, mais as suas fontes de comportamento são externas ao grupo. O seu comportamento acaba, portanto, por ser influenciado por uma complexa combinação de variáveis de teor político, econômico, social, cultural, espiritual e tradicional.

Para compreender esse complexo sistema de influências, temos que olhar mais profundamente para as normas e os valores que formam as comunidades em análise. Compreender as normas e os valores locais pode auxiliar na tradução ou ilustração de padrões de comportamento, que por sua vez, podem indicar quais abordagens e pontos devem ser considerados na implementação de práticas de restraint que se tornarão parte integrante da identidade daquela comunidade e, por conseguinte, de sua estrutura jurídica própria em conformidade com as normas humanitárias internacionais.

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