top of page

Colunistas do Lepadia

WhatsApp Image 2022-08-24 at 10.46.18.jpeg

MEMÓRIA SOCIAL E PATRIMÔNIO CULTURAL INTERNACIONAIS: PELA PROTEÇÃO INTEGRAL E UNIVERSAL DOS BENS IMEMORIAIS

André Luiz Valim Vieira

Bacharel e Mestre em Direito pela UNESP. Doutor em Ciências Sociais (Relações Internacionais e Desenvolvimento) pela UNESP. Pesquisador e membro do Laboratório de Estudos e Pesquisas Avançadas em Direito Internacional e Ambiental da Universidade Federal do Rio de Janeiro (LEPADIA-UFRJ). Advogado.

E-mail: alv.vieira@unesp.br

         Quando pensamos em sociedade internacional e sua conexão com direitos há, sem dúvida, três temas centrais sobre os quais gravitam os tratados e as preocupações das nações em suas relações entre nações e as organizações internacionais: os direitos humanos, o meio ambiente; e, o patrimônio histórico e cultural. Esses três temas envolvem problemáticas e condicionantes sensíveis e preocupantes. Sua proteção requer atenção especial dos Estados-nações e sua recuperação em casos de destruição e/ou desrespeito se apresentam quase impossível de retornar aos status anterior de lesão ou de dano.

         Sem dúvida a proteção e efetivação dos direitos humanos são necessidades permanentes e inesgotáveis, que se renovam com o passar dos anos, décadas e séculos e demandam atualização e esforço contínuo para sua integralidade. O meio ambiente como objeto de discussão, proteção e garantia têm ganhado especial atenção dos países e órgãos internacionais, principalmente da metade do século XX em diante, como forma de manutenção da vida, da dignidade e de todos os demais interesses internacionais: comércio, relações políticas, bem-estar, segurança, entre outros.

       Um terceiro aspecto da preocupação internacional, não menos relevante, que dialoga especialmente com os direitos humanos e com o meio ambiente, representa a proteção à história e às conquistas humanas: seus avanços e construções – sejam materiais ou arquitetônicas; sejam bens imateriais, memoriais ou tradicionais imateriais – todos compondo o patrimônio social e cultural. Se durante muitos lustros a preocupação das relações internacionais era apenas a formalização de alianças militares, acordos comerciais e circulação de pessoas e de bens; hodiernamente, os bens memoriais sociais e do patrimônio cultural são bens de importância ampla, coletiva e universal.

         Percebe-se, portanto, que o patrimônio internacional não representa o quantitativo monetário ou financeiro, de capital, investimentos, relações comerciais ou reservas de capital. O verdadeiro patrimônio internacional cuja proteção se mostra mais relevante e imprescindível às nações e à sociedade internacional são àqueles que se identificam como provenientes da memória social; dos hábitos, saberes e tradições de um povo ou de uma localidade; do patrimônio cultural, natural (ou artificial), histórico, artístico, arquitetônico; entre outros.

     Um dos primeiros documentos internacionais a garantir o direito ao patrimônio cultural foi o Tratado de Roerich, consistente pacto de proteção a instituições artísticas, científicas e monumentos históricos, assinado em 1935. A denominação desse tratado provém, como uma homenagem, ao russo e ativista Nicholas Roerich, nascido em 1874. Consta que, preocupado com as ameaças sobre os bens culturais do planeta, Roerich publicou proposta pioneira sobre a necessidade de um pacto internacional para proteção dos valores culturais, destacando a importância do assunto para a comunidade internacional.

       O Pacto de Roerich se destaca por ser o pioneiro a declarar a necessidade, de todas as nações, de proteger os bens culturais e o patrimônio social, independentemente de a época ser de guerra ou paz; para além dos conflitos e problemas: assim como o são os direitos humanos e os direitos ambientais, cuja proteção independe de circunstâncias, ocasiões ou condicionantes.  No Brasil, o Tratado de Roerich, foi internalizado através do Decreto nº. 1.087, de 08 de setembro de 1936, sob a batuta de Oswaldo Aranha e a ratificação de Getúlio Vargas.

         Embora muitas vezes, no presente e no passado, constatamos que as guerras e os conflitos, a dominação e a colonização procuraram dizimar pessoas e culturas, combatentes e todo o conhecimento tradicional daquele país, região ou grupo; praticando verdadeiros genocídios culturais é preciso sempre pensar na evolução e melhoria dos sistemas de proteção de direitos: como os direitos culturais.

         Mais contemporaneamente, em Paris no ano de 2003, nasceu a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, com natureza jurídica de soft law; porém, um importante paradigma na proteção internacional dos patrimônios culturais, tendo como objetivos: a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial; o  respeito  ao  patrimônio  cultural  imaterial  das  comunidades,  grupos  e  indivíduos  envolvidos; a conscientização no plano local, nacional e internacional da importância do patrimônio cultural imaterial e de seu reconhecimento recíproco; a cooperação e a assistência internacionais.

       Quando procuramos falar ainda da proteção internacional às memórias sociais e ao patrimônio cultural internacionais é preciso, imperiosamente, a identificação dos objetos sobre os quais recai a proteção da normativa internacional a fim de poder se estabelecer os limites de ação ou omissão das nações. Nesse aspecto se identificam como patrimônio cultural imaterial: “(...) as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural.” 

        Logo, o patrimônio cultural imaterial é aquele que se transmite de geração em geração, que é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade; e, contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana. Outro aspecto de destaque é que o patrimônio cultural imaterial tem estreita ligação com o desenvolvimento sustentável e representa uma de suas condicionantes.

       São exemplos, mas não se esgotam nessa identificação, como patrimônio cultural imaterial: as tradições e expressões orais, incluindo o idioma como veículo do patrimônio cultural imaterial; as expressões artísticas; as práticas sociais, rituais e atos festivos; o conhecimentos e práticas relacionados à natureza e ao universo; ou as técnicas artesanais tradicionais.

       Já a memória social pode abranger a memória individual ou a  memória coletiva e consiste, pois,  no registro de fatos, acontecimentos ou registros significativos e relevantes para uma pessoa ou um conjunto de pessoas em determinado período Em verdade, apesar de nosso conceito aqui relatado, sem dúvida, memória social consiste em conceito polissêmico, em que a própria distinção entre memória individual, coletiva e social se torna um problema.[1] Para o sociólogo francês Maurice Halbwachs, a memória é um fenômeno social.[2] A teoria científica de Halbwachs diz que o ser humano não se lembra sozinho, assim, nossa memória e lembranças são produto da sociedade em que vivemos.[3]

         Em que pese a existência de tratados internacionais que visam à proteção dos bens culturais materiais e imateriais, dentre estes a própria memória dos povos indígenas e povos tradicionais, resta indiscutível a carência de normativas internacionais sobre a proteção de formas de valorização das memórias sociais – de um modo mais amplo e mais específico –  como bens culturais universais de importância histórica, social e internacional. Cada vez que algum conhecimento tradicional associado, alguma prática ancestral, alguma lembrança pretérita, alguma memória regional não registrada; perdem-se ou caem nas areias do esquecimento muito de nossa origem enquanto integrantes de uma comunidade cultural, social e histórica se perdem. Perdemos parte significativa de nós mesmos e daquilo que nos ajudou a construir como seres humanos.

        Os bens imemorais, dentre eles a própria memória social, enquanto construção cultural e patrimônio mundial – para as presentes e futuras gerações – necessitam, portanto, de maior atenção das nações e da sociedade internacional. Sua proteção integral passa então, necessariamente, pelo seu reconhecimento, identificação, preservação e proteção: tanto internamente no espaço geográfico de cada país, quanto universalmente, como contributo para o conhecimento e experiência mundiais de nossas histórias e origens, práticas e saberes.

 

 

 

[1] GONDAR, J. (2015). Memória individual, memória coletiva, memoria social. Revista Morpheus - Estudos Interdisciplinares Em Memória Social, 7(13). Recuperado de http://www.seer.unirio.br/morpheus/article/view/4815

[2] HALBWACHS, Maurice.  Los marcos sociales de la memoria. Caracas, Anthropos Editorial, 2004.

[3] DA COSTA TORINO, Isabel.: "A memória social e a construção da identidade cultural: diálogos na contemporaneidade", en Contribuciones a las Ciencias Sociales, Diciembre 2013, www.eumed.net/rev/cccss/26/memoria-social.html

bottom of page