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Colunistas do Lepadia

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O IMPACTO DOS DIREITOS DA CRIANÇAS NAS LEGISLAÇÕES BASEADAS NOS INTERESSES DO ESTADO, A FORÇA DO PRINCÍPIO DO INTERESSE DA CRIANÇA

Daniele Gomes de Moura

Graduada em direito pelo CEUMA, Maranhão. Mestre em Direito Público pela Universidade Estácio de Sã. Mestre em Direito civil e penal pela Université Libre de Bruxelles (ULB). Mestranda em direitos da criança e do adolescente pela Université Libre de Bruxelles (ULB).

E-mail: danielegdemoura@icloud.com

       Nos últimos anos o fenômeno da migração de crianças[1] e adolescentes desacompanhados vem aumentando de forma desarrazoada, motivo pelo qual as organizações internacionais começaram a se manifestar com intuito de proteger este grupo, especialmente por considera-los como um grupo em condições de vulnerabilidade aumentada.

     Crianças sempre participaram do processo migratório, porém, em grande parte, estavam acompanhadas dos adultos. Motivo que as tornavam invisíveis, pois eram arrastadas como parte de um projeto familiar. A partir do momento que as crianças desprendem-se deste contexto e começam a migrar desacompanhadas, mesmo que, tenham por objetivo reagrupar-se aos membros de sua família, os fluxos migratórios infantis saem do anonimato e aparecem como um fenômeno, que demandam respostas por parte dos Estados de acolhimento.[2]

      E, a partir deste processo de construção, legislativa e institucional, com objetivo de comportar estas novas demandas, crianças migrantes desacompanhadas promovem modificações nas politicas migratórias. Este processo de transformação ocorre num contexto construído com base na ideia de soberania nacional, mas agora precisa acoplar questões de direitos humanos.[3]

     Neste sentido, utilizaremos como exemplo, as transformações na legislação belga. Em razão da Bélgica fazer parte da União Europeia, sua politica migratória é orientada pela legislação produzida pela União.[4] Desde 1997, os Estados membros transferiram para a União Europeia a competência de elaborar uma politica comum de imigração, em razão do impacto que as politicas migratórias ocasionam no mercado de trabalho e nas condições de trabalho. [5] Outras formas de interferência decorrem da assinatura e ratificação dos Tratados e das Convenções internacionais de Direitos Humanos, assim como das jurisprudências dos Tribunais nacionais e da Corte Europeia de Direitos Humanos.

       Por estas razões, no últimos anos, a legislação nacional belga vem sofrendo inúmeras modificações, em especial em sua política migratória. No que relaciona-se à construção do sistema de proteção à criança migrante e desacompanhada, citaremos marco de transformação na legislação belga, o caso Tabita.[6] Que, de certa maneira, contribuiu para a edição da lei-programa de 24 de dezembro de 2002, que criou, para a criança estrangeira desacompanhada, a figura do tutor.[7]

   Com a edição desta lei, a Bélgica promoveu um importante avanço no sistema de proteção à criança migrante desacompanhada, especialmente ao incluir a criança que não preenche os requisitos da lei de acesso ao território, de ficar, de se estabelecer e da expulsão de estrangeiros, de ser beneficiado com o acesso à garantia do tutor.

       Neste mesmo sentido, regulamentou o procedimento que as autoridades devem tomar quando verificarem a presença ou a declaração da criança de estar desacompanhada. Determinando que, a autoridade, nas fronteiras ou dentro do país, deverá informar ao Serviço de Tutela, as autoridades competentes em matéria de asilo, de acesso ao território, de residência e deportação, além de dever comunicar toda informação que tiver referente à esta criança que estará desacompanhada.

    Após o recebimento da comunicação, caberá ao Serviço de Tutela a responsabilidades de identificar se a criança desacompanhada encontra-se dentro dos requisitos previstos em lei. Em caso positivo, devendo nomear imediatamente um tutor para acompanha-lo em todas as questões à ele concernente, com a finalidade de garantir uma solução durável de acordo com os interesses da criança. Caso não seja possível nomear imediatamente um tutor, o encargo será atribuído ao diretor do Serviço de Tutela exercer à função.

         O tutor, provisório ou guardião, deve assistir a criança em todos as etapas do procedimento de acolhimento, em qualquer fase, inclusive em processos administrativos ou judiciais, podendo ex officio solicitar a assistência de um advogado. Além de assegurar que a criança seja encaminhada a escola e receba apoio psicológico e cuidados médicos apropriados, quando necessários.

      Somados a estes procedimentos, mais uma transformação na legislação belga ocorreu em 2011, modificando a lei de acesso ao território[8], através da inclusão do capitulo VII[9]. Esta modificação incluiu uma série de garantias, direcionadas aos menores estrangeiros desacompanhados, tais como:  (i) audição da criança; (ii) reunificação familiar; (iii) exame individual; (iv) ordem de deportação; (v) documento de residência válido por seis meses; (vi) residência temporária; e (vii) residência ilimitada.

            Todas estas medidas, de certa forma, desburocratizaram os procedimentos migratórios e de acolhimento. E, caso sejam devidamente observadas, visam assegurar à criança estrangeira e não acompanhada de um adulto por ele responsável, meios de participação do processo de acolhimento. Conforme preconizam as legislações internacionais de direitos humanos e proteção à criança.

         Segundo o relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas[10], a Bélgica possui uma legislação que oferta um regime especial de representação para as crianças desacompanhadas, assim como possui um processo de identificação, de reconhecimento do direito de ser cuidado prioritariamente, da designação de um tutor e da compreensão de encontrar uma solução durável, de acordo com seus interesses e dentro de um prazo razoável. Além de outras medidas legais e administrativas visando ofertar à criança estrangeira um acolhimento humanitário.

       Por outro lado, identificaram que, uma maioria significativa de menores estrangeiros, apesar de sua grande vulnerabilidade, não são atendidos pelos serviços de bem-estar dos jovens, demonstrando a necessidade de incentivar a formação especializada em direitos humanos e proteção das crianças para as equipes que trabalham diretamente com estes grupos. Reforçando suas competências para conceberem os múltiplos aspectos da vulnerabilidade humana.

            Outro problema relaciona-se ao desempenho limitado dos serviços sociais. Demonstrando uma espécie de tratamento baseado na condição migratória da criança e não na sua condição de criança, acarretando a possibilidade de recepção inapropriada e a determinação de uma solução que não seja durável e nem baseada em seus interesses.

Apesar de contar com instituições e estruturas jurídicas fortes, que em tese contribuem para assegurar um sistema de proteção mais eficaz,[11] nos últimos anos, a Bélgica tem sido noticia nos jornais, pois obteve condenação internacional pela prática de aprisionamento de crianças estrangeiras em razão de seu status migratório.[12]

            Não é a primeira vez que a Bélgica é condenada por esta prática. No caso acima as crianças foram encarceradas em razão da condição migratória de seus pais, porém sua legislação permitiu que crianças sozinhas, com cinco anos de idade, também foram encarceradas,[13] demonstrando que, no que tange à proteção da criança, o sistema encontra falhas.

O ACNUR alertou que, a ausência de conhecimento do tutor para avaliar o melhor interesse da criança, revelou que, na prática, não existe uma abordagem holística dos direitos e necessidades da criança. Alertaram também, sobre a possibilidade de ampliação dos atores relacionados à busca pela família da criança desacompanhada, ensejando uma colaboração de várias instituições e assim aumentarem a rede de proteção. Consideraram o reagrupamento familiar como uma solução durável, mas esta medida não deve ser a única.[14]

       Alertaram  também, sobre a abordagem, utilizada pelos atores institucionais, baseado no prisma restritivo de asilo ou refúgio, pois  em muitos casos, uma criança não se enquadra nestas medidas, sendo o retorno ao país de origem algo contrário aos seus interesses,  logo uma solução durável e adequada diversa precisaria ser construída. Para tanto, o relatório aponta a necessidade de envolvimento de atores ligados à proteção e bem-estar da criança, através do estabelecendo de parcerias, medida que fortaleceria o sistema de proteção.[15]

      Percebemos que, apesar dos inúmeros esforços, ainda estamos longe de promover políticas migratórias fundadas nos direitos humanos, porém, e de outra maneira, também percebemos que, os direitos das crianças estão, de certa forma, contribuindo para um aperfeiçoamento destas legislações.

        As políticas migratórias são construídas na lógica do interesse do Estado, com objetivo de manter sua soberania e promover a segurança nacional. Porém este sistema favorece a demonização do migrante, estimulando os estigmas sociais, pois sinaliza aos cidadãos que o estrangeiro é um intruso. É necessário encontrar um sistema que balance os interesses e, no caso da criança, que a considere de forma primordial.

       Acreditamos que, um sistema de proteção da criança construído na base da doutrina da proteção integral, obriga as instituições a considerarem seu interesse em todas as decisões e acaba impulsionando o debate em busca do equilíbrio dos interesses em jogo. O equilíbrio entre estes campos de forças e interesses contrapostos, acabam pondo em xeque, teorias construídas nos séculos passados, tais como o conceito de soberania nacional, prescindindo de novos conceitos para adequar-se ao novo cenário. Enquanto não conseguimos reorganizar estes campos de interesses de forma que conjuguem soberania do Estado e direitos fundamentais,  continuaremos perpetrando práticas que promovem a exclusão e legaliza a arbitrariedade.[1]

 

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[1] Bolgar Vera. L'intérêt général dans la théorie et dans la pratique. In: Revue internationale de droit comparé. Vol. 17 N°2, Avril-juin 1965. pp. 329-363. Disponível em: https://doi.org/10.3406/ridc.1965.14192. Acesso em: 12 de abril de 2022.

 

[1] NOTA: Neste artigo utilizaremos o termo criança, conforme previsto na Convenção Internacional relativa aos Direitos da Criança, mas para efeitos de escrita poderemos, em alguns momentos, adotarmos o termo adolescente, quando tratar de crianças acima dos 12 anos.

[2] Garnier, Pascale. « L’“agency” des enfants. Projet scientifique et politique des “childhood studies” », Éducation et sociétés, vol. 36, no. 2, 2015, pp. 159-173. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-education-et-societes-2015-2-page-159.htm. Acesso em: 12 de abril de 2022.

[3] Fassin, Didier. "La biopolitique n’est pas une politique de la vie." Sociologie et sociétés, volume 38, number 2, automne 2006, p. 35–48. Disponível em:  https://doi.org/10.7202/016371ar. Acesso em: 12 de abril de 2022.

[4] Parlement Européen. Direction Générale des Politiques Internes. “Répartition des compétences entre l'Union européenne et  ses Etats membres  en matière d'immigration”. Disponível em: https://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/note/join/2011/453178/IPOL-LIBE_NT%282011%29453178_FR.pdf. Acesso em: 30 de março de 2022.

[5] Parlement Européen. Direction Générale des Politiques Internes. “Répartition des compétences entre l'Union européenne et  ses Etats membres  en matière d'immigration”. Disponível em: https://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/note/join/2011/453178/IPOL-LIBE_NT%282011%29453178_FR.pdf. Acesso em: 30 de março de 2022.

[6] NOTA: “Caso Tabitha”. É o caso de uma criança congolesa que foi detida, ainda no aeroporto, por estar indocumentada. À época a menina tinha cinco anos de idade e ficou dois meses sozinha numa detenção. Após este período foi enviada para seu país de origem sem os cuidados necessários para uma menina em tenra idade. A Bélgica, por este fato, foi condenada em julgamento da Corte de Estrasburgo por submeter Tabita a tratamento desumano e degradante.

[7] BELGIQUE, Loi-programme du 24 décembre 2002. “Tutelle des mineurs étrangers non accompagnés (dite "loi Tabita")”. Disponível em: https://www.refworld.org/docid/48abd55f0.html. Acesso em: 30 de março de 2022.

[8] BELGIQUE, Loi 15 decembre 1980. “Loi sur l'accès au territoire, le séjour, l'établissement et l'éloignement des étrangers.”  Disponível em: https://www.ejustice.just.fgov.be/eli/loi/1980/12/15/1980121550/justel. Acesso em: 30 de março de 2022.

[9] BELGIQUE, Loi 12 septembre 2011. “Loi modifiant la loi du 15 décembre 1980 sur l'accès au territoire, le séjour, l'établissement et l'éloignement des étrangers, en vue de l'octroi d'une autorisation de séjour temporaire au mineur étranger non accompagné.” Disponível em: https://www.ejustice.just.fgov.be/cgi_loi/change_lg.pl?language=fr&la=F&table_name=loi&cn=2011091236. Acesso em: 10 de abril de 2022.

[10] Nations Unies, Haut-Commissariat des Nations Unies. “Vers une protection renforcée des enfants non-accompagnés et separés en Belgique”, 2019. Disponível em: https://www.unhcr.org/be/wp-content/uploads/sites/46/2019/09/UNHCR-UASC_Belgium-FRA.pdf. Acesso em: 30 de março de 2022.

[11] NOTA: página que mostra fotos da estrutura que acolhe crianças migrantes. Salas limpas e organizadas, com brinquedos, coloridas e adequadas para crianças. In BELGIQUE, Commissariat Général aux réfugiés et aux apatrides. Disponível em: https://www.cgra.be/fr/asile/lenfant-et-lasile. Acesso em: 30 de março de 2022.

[12] DEI, Belgique. “Communiqué : La Belgique à nouveau condamnée par une instance internationale pour avoir détenu des enfants migrants.”Disponível em: https://www.dei-belgique.be/index.php/blog/189-communique-la-belgique-a-nouveau-condamnee-par-une-instance-internationale-pour-avoir-detenu-des-enfants-migrants.html. Acesso em: 30 de março de 2022.

[13] UCL, “Sorti de presse : "20 ans après l'affaire Tabitha" - Un premier ouvrage collectif pour la Clinique Rosa Parks”, 2021. Disponível em: https://uclouvain.be/fr/facultes/drt/actualites/sorti-de-presse-20-ans-apres-l-affaire-tabitha-un-premier-ouvrage-collectif-pour-la-clinique-rosa-parks.html. Acesso em: 31 de março de 2022.

[14] Conseil du Contentieux des Étrangers (CCE), arrêt 121.178. Disponível em: https://www.rvv-cce.be/sites/default/files/arr/A121178.AN.pdf. Acesso em: 10 de abril de 2022.

[15] Nations Unies, Haut Commissariat des Nations Unies. “Vers une protection renforcée des enfants non-accompagnés et separés en Belgique”, 2019. Disponivel em: https://www.unhcr.org/be/wp-content/uploads/sites/46/2019/09/UNHCR-UASC_Belgium-FRA.pdf. Acesso em: 30 de março de 2022.

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