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Colunistas do Lepadia

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DIREITO INTERNACIONAL, ACESSO À ÁGUA E AS REPERCUSSÕES NO ÂMBITO BRASILEIRO

André Ricci de Amorim

Doutorando em Direito Internacional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mestre em Direito Internacional Público e Europeu pela Universidade de Coimbra, Portugal. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pesquisador no LEPADIA. Advogado e Professor Universitário.

E-mail: andrericci_8@hotmail.com

Dizer que a água é essencial para a vida na Terra nos parece óbvio. Aliás, não apenas aqui, mas no universo, tendo em vista que a ciência ao buscar indícios de vida extraterrestre tende a analisar se naquele local há prevalência de água.

Contudo, transformar essa noção de essencialidade em direito indispensável para uma vida digna (noutros termos, direitos humanos) foi uma árdua tarefa. Isso porque, a despeito de a Declaração Universal dos Direitos Humanos e os Pactos de 1966 terem representado um marco na estruturação dos direitos humanos, não houve qualquer menção expressa acerca de um reconhecimento do direito de acesso à água.

Diante disto, ao longo dos anos foi atribuída à água a qualidade de recurso natural que, consequentemente, tornou-se um recurso econômico a ponto de alguns doutrinadores, tais como Maude Barlow e Tony Clarke, afirmarem que a lógica capitalista transformou-a num verdadeiro Ouro Azul (ou Blue Gold, conforme obra escrita pelos autores).

Ora, não se pode perder de vista que embora o nosso planeta tenha um grande volume de água, estima-se que apenas 1% está disponível para o consumo humano, seja de forma direta, seja para a produção agropecuária e abastecimento das indústrias, por exemplo. Ademais, vale frisar que pelo fato de a distribuição da água não ser equânime, algumas regiões tendem a sofrer maiores impactos e, por isso, são mais suscetíveis a conflitos pelo seu uso, como o Oriente Médio e algumas regiões da África.

É justamente nessa perspectiva que se faz importante recordar o grande marco acerca do reconhecimento da água enquanto um direito humano: a Resolução A/RES/64/292 da Assembleia Geral da ONU, de 2010, instrumento pioneiro ao afirmar de forma inequívoca que o acesso à água potável e o saneamento básico devem ser ofertados a todo ser humano como expressão da busca pela dignidade humana.

Mas, engano pensar que o documento foi recepcionado de forma unânime e, portanto, passou a vincular todos os entes da sociedade internacional. Na verdade, conforme alertado por Sidney Guerra e Vinicius Moura, foi necessária a aprovação de outro instrumento para ampliar e assegurar legitimidade política internacional, a saber, a Resolução A/RES/70/169 da Assembleia Geral da ONU, de 2015.

De todo modo, vale mencionar que as orientações trazidas nos instrumentos internacionais em matéria ambiental costumam ser construídas por intermédio da soft law e, por isso, ainda pode ser um grande desafio a concretização de direitos, já que tais documentos tendem a não gerar obrigações positivas aos Estados.

Todavia, uma possível maneira de tornar o acesso à água um direito mais palpável é partir para o reconhecimento formal no âmbito doméstico.

Nesse sentido, o Brasil vem envidando esforços para a mudança de cenário. Isso porque, o Senado Federal apresentou, em 2018, a Proposta de Emenda à Constituição N. 4 (PEC N. 4) que altera o artigo 5º da Constituição Federal, no sentido de inserir formalmente o acesso à água no rol de direitos e garantias fundamentais. Pela PEC N. 4, objetiva-se inserir o seguinte dispositivo ao artigo 5º da CRFB/88: “LXXIX - é garantido a todos o acesso à água potável em quantidade adequada para possibilitar meios de vida, bem-estar e desenvolvimento socioeconômico”.

É interessante notar que o Legislativo Federal aduz como justificativa para a PEC o risco de exclusão de determinados grupos que já se encontram em situação de vulnerabilidade hídrica. Como consequência, haveria risco iminente de tensões envolvendo relações de poder e de dominação territorial, em especial, em regiões que já sofrem com a escassez hídrica, tais como o semiárido brasileiro.

Tal justificativa visa evitar, justamente, o que já ocorre em alguns países nos quais o grande capital aplica valor mercadológico à água a fim de atender exclusivamente (ou preferencialmente) às demandas comerciais. Em casos extremos, observam-se verdadeiros cenários de conflito em torno do acesso à água, como foi o ocorrido em Cochabamba, no início dos anos 2000, conhecido como a Guerra da Água na Bolívia.

Quando o Estado Brasileiro se propõe a discutir o reconhecimento do acesso à água como um direito fundamental autônomo e expõe justificativas plausíveis, o Poder Legislativo se mostra empenhado em possibilitar a criação futura de políticas públicas nesta matéria, bem como embaraçar a incidência do fenômeno do water grabbing, termo em inglês usado para designar a apropriação de recursos hídricos, geralmente encampada por grandes empresas multinacionais e com maior incidência em países emergentes ou em desenvolvimento.

Diante do presente momento no qual se clama pelo fortalecimento da proteção da pessoa humana, não parece cabível admitir a privação do acesso à água em favor do interesse econômico. Aliás, cumpre ressaltar que mesmo a ONU ao reconhecer a água como um direito humano, não afirmou ser vedada a sua exploração por empresas privadas. Todavia, ressaltou que é importante que os Estados tenham atenção em assegurar que todos tenham acesso, a fim de não precarizar a busca por uma vida com dignidade.

Portanto, sem intento de esgotar a discussão, observa-se que o esforço no campo do Direito Internacional em criar instrumentos capazes de assegurar formalmente o direito humano de acesso à água, apesar de louvável, não pode ser considerado um objetivo alcançado. Contudo, não podemos negar as inquietudes positivas já observadas no direito pátrio, tendo em vista, em especial, a PEC N. 4. Enfim, esperamos que no futuro não nos deparemos com a triste realidade narrada pelo poeta Luiz Gonzaga, na canção Asa Branca, que, pela ausência de água, não tem um pé de plantação e viu morrer de sede seu alazão.

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