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Colunistas do Lepadia

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CONFEDERALISMO DEMOCRÁTICO: UM NECESSÁRIO DEBATE CONTEMPORÂNEO DO DIREITO INTERNACIONAL A PARTIR DO CONTRATO SOCIAL DOS CURDOS DA REGIÃO NORTE DA SÍRIA (ROJAVA)

Othon Pantoja

Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Faculdade de Direito do Centro de ensino unificado de Brasília (UniCEUB).

E-mail: othon.pantoja@gmail.com

Os Curdos representam um povo islâmico não árabe e em grande parte sunita, com cultura e língua próprias (incluindo vários dialetos), que vive em áreas contíguas da Turquia, Iraque, Irã e Síria. Após a islamização, no século VII, por serem considerados indo-europeus etnicamente e linguisticamente distintos dos seus vizinhos, constituíram-se na maior “nação etnolinguística sem Estado" do mundo. Há a estimativa de que existam entre 35 e 40 milhões de habitantes de etnia curda pelo mundo.

Pertencentes ao antigo Império Otomano, os Curdos sofreram a exclusão provocada pela dissolução deste império. Num primeiro momento, o Tratado de Sèvres (1920) previa a existência de um Estado Curdo (Art. 45), no entanto, o documento assinado não chegou a ser ratificado entre o Império Otomano e os países aliados da Primeira Guerra Mundial (sobretudo Reino Unido e França). Em seguida, o Tratado de Lousanne (1923) revisou as fronteiras da Turquia e deixou os Curdos sem Estado, dividindo-os entre Turquia, Irã, Iraque e Síria.

Em razão da condição apátrida, os Curdos foram - e continuam sendo - submetidos a formas estruturais de opressão, como a negação do direito à terra, à língua, à cultura, à participação política ou mesmo a um passaporte ou número de segurança social. Nesse processo, a marginalização das mulheres curdas aumentou consideravelmente por terem sido sujeitas à leis patriarcais.

No entanto, em função do colapso das instituições estatais sírias ainda nos anos 2000, as áreas de maioria curda, sobretudo na região norte conhecida por “Rojava”, foram abandonadas à própria sorte. Tal cenário colaborou para um vácuo legal e consubstanciou o autoproclamado governo autônomo, cujo tribunais passaram a ser dirigidos pelos membros do Partido da União Democrática, da Síria (em curdo: Partiya Yekîtiaya Demokrat, PYD), filiado com o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (em curdo: Partiya Karkerên Kurdistanê, PKK).

O chamado Contrato Social Revolucionário Sírio, em 2013, considerado a sua Carta Constitucional, deu impulso à fundação da República do Norte da Síria (Rojava), condição que possibilitou a autodefesa em relação à invasão do Estado Islâmico; sem isso, a ajuda posterior da OTAN não teria sido efetiva. Essa lacuna jurídica possibilitou a implementação de um modelo administrativo de autogestão, tendo como teoria política, econômica e social o Confederalismo Democrático, elaborado Abdullah Öcalan, teórico e militante por direitos curdos. Trata-se de uma organização política sem Estado por se encontrar dentro do espaço soberano da Síria, mas com total autonomia territorial. É dividida em cantões que, apesar de terem a sua autonomia, seguem a estrutura administrativa elaborada no Contrato Social. No entanto, possui um método próprio de organização: é multicultural, aceitando a cidadania de indivíduos de outros países, etnias e religiões; é orientada para o consenso; tem a ecologia e o feminismo como pilares; e possui economia solidária e cooperativa, ao invés de concorrência e competitividade não reguladas.

Por outro lado, essa autonomia possui claro limite dentro das relações internacionais, bem como a segurança jurídica baseada no direito internacional público. Isso ocorre em razão da própria colonialidade em que o direito internacional público foi idealizado e forjado pelos países do norte global, que se impõe não apenas politicamente, mas sobretudo economicamente, a partir de um modo de vida imperial, de codependência exploratória dos recursos naturais do sul para com o norte global.

Ademais, os Curdos reivindicam-se como povos indígenas, por ocuparem tradicionalmente a região e possuírem uma relação ancestral com o território que ocupam. Por isso, a Convenção 169, de 1989, da Organização Internacional do Trabalho (Art. 1º), que trata sobre os direitos dos povos indígenas, vale também para os Curdos. Outro instrumento internacional é o Pacto Internacional Sobre os Direitos Civis e Políticos, que apesar de não ser possuir força vinculante abre essa possibilidade para a autonomia dos Curdos do norte da Síria.

Outrossim, é necessário rediscutir as bases teóricas e epistemológicas do direito internacional sob a perspectiva decolonial, isto é, utilizando a diversidade, pluralidade sociocultural, econômica e a experiência que Rojava abre a outras possibilidades. Todavia, é importante destacar que não se trata de copiar o confederalismo democrático como um modelo ideal, mas sim utilizar as diversas cosmovisões, abrindo possibilidades para a(s) teoria(s) do direito democrático.

Pegando o gancho do contrato social (Constituição) estabelecido na República do Norte da Síria, nomenclatura escolhida pelos povos situados em Rojava, é baseado em um método de democracia radical e outros tipos de cidadania, que não se prendem a modelos padronizados. Esse tipo de cidadania possui forte ligação ecológica, dialoga e não renega, não apenas com o direito internacional ambiental e também com os direitos humanos. A negação é para com a sua infraestrutura colonial e a proposição de epistemologias decoloniais que visem à emancipação daqueles que são historicamente invadidos, explorados, subalternizados.

Essa negação é utilizada pela dialética, com abordagem ecológica e feminista, já que a colonialidade é sobretudo patriarcal. No caso de Rojava, o papel das mulheres foi preponderante para a reelaboração do modelo de autogestão que conseguem demonstrar outros modos de viver e existir para além do modelo tradicional do Estado-Nação.  Nesse sentido, estabeleceram o direito fundamental à igualdade de gênero (Art. 27º) que garante "os direitos invioláveis" das mulheres nos cantões. As oportunidades para que as mulheres se envolvam na vida política e social exige que um número igual de mulheres e homens seja selecionado para dirigir as instituições administrativas e é demonstrado também na formação de duas forças armadas - um homem e uma mulher, cada um com a mesma responsabilidade reconhecida. As mulheres devem ter um número aproximadamente igual de posições administrativas em relação aos homens na administração da Assembleia Legislativa e do Conselho Judicial: cota de 40% de mulheres, 40% para homens e os restantes 20% para quem receber o maior número de votos.

Assim, a construção de um devir pela decolonialidade é uma discussão não apenas filosófica e abstrata, mas como um movimento permanente em busca de transformação da realidade. Fincando os pés no direito, este pode ser rediscutido mediante uma perspectiva de desconstrução reconstrutiva do próprio direito, conforme teorizado pelo filósofo francês Jacques Derrida. Em sua obra “Força de lei – o fundamento místico da autoridade”, expõe como persististe o autoritarismo coercitivo das instituições, apesar da existência de direitos fundamentais que deveriam impedir qualquer movimento autoritário.

Para além disso, colocando o feminismo e a ecologia (Ecofeminismo) como centrais na decolonialidade do direito internacional, a reformulação e reelaboração do conceito de cidadania, que não se restringe a um modelo padrão, mas que reverberam os diferentes modos de existir. Nessa linha, o autor uruguaio Eduardo Gudynas, em sua obra “Natureza como sujeito de direitos”, conceituou as metas cidadanias ecológicas, trazendo o debate a respeito dos modos de existir de diferentes povos e de territórios por meio da perspectiva biocêntrica, superando o conceito de cidadania ambiental, debatidas a partir dos direitos fundamentais de terceira geração.

Diante do exposto, ressaltamos a importância de ter métodos e formas diversas de pensar o direito, como tem se desenvolvido o Direito Internacional das Catástrofes, sendo o confederalismo democrático não um caminho a ser seguido, mas uma observação de que  Rojava pode ser um laboratório dessa práxis, e abrir a possibilidades para outras perspectivas e cosmovisões no debate contemporâneo que objetiva soluções para as diversas crises humanitárias e socioecológicas provocadas pela sociedade de risco.

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