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Colunistas do Lepadia

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CASO ALEMANHA V. ITÁLIA SOBRE IMUNIDADES DE JURISDIÇÃO E O RESGATE NECESSÁRIO AO VOTO DO JUIZ CANÇADO TRINDADE

Brenda Maria Ramos Araújo

Graduação em Direito pela PUC-Rio, mestrado em Direito Internacional pela UERJ, doutoranda em Direito Internacional pela UERJ, bolsista CAPES, pesquisadora do LEPADIA e do GPDI.

E-mail: brendamariara@gmail.com

     No dia 29 de maio de 2022, o professor Antônio Augusto Cançado Trindade faleceu em Brasília, mas suas contribuições ao direito internacional continuam a sua caminhada. O objetivo deste texto é realizar uma pequena homenagem ao jurista. No dia 29 de abril de 2022, a Alemanha iniciou procedimento perante a Corte Internacional de Justiça contra a Itália sobre a violação de sua imunidade estatal novamente. É momento de recordar a decisão da Corte de 2012 e o voto dissidente do juiz Cançado Trindade, pois o novo procedimento é, em grande medida, uma repetição do antigo.

     Em 2008, a Alemanha entrou na Corte Internacional de Justiça com uma ação contra a Itália, alegando que sua imunidade de jurisdição havia sido violada quando a Itália admitiu em suas cortes ações de reparações por violações ao Direito Internacional Humanitário (DIH). As violações ao DIH causadas pela Alemanha durante a Segunda Guerra envolviam o massacre de civis durante políticas de represália da população italiana e o estabelecimento de condições análogas à escravidão para civis e soldados italianos. A Alemanha alegava também violações ao mesmo direito por ações de execução contra a Villa Vigoni, que é uma propriedade alemã em território italiano. Por último, a Alemanha afirmava que sua imunidade teria sido violada quando a Itália declarou que sentenças gregas em termos semelhantes poderiam ser executadas em seu país.

     Segundo a Itália, a imunidade de jurisdição não alcançaria indenizações ou delitos referentes a morte e danos físicos ou a propriedades cometidos no território do Estado com jurisdição. Além disso, a Itália alegava que a imunidade não seria aplicável em casos de violações graves a normas peremptórias do direito internacional que não possuem outra maneira de serem executadas.

     Na época, a Corte considerou que tanto a Convenção da Comissão de Direito Internacional como a Convenção Europeia sobre imunidade de jurisdição estabelecem exceções para ações de indenização, mas, de forma direta ou indireta, determinam que essas exceções não podem ser aplicadas às ações das forças armadas de um Estado. Segundo a Corte, a falta de comentários de Estados e de suas cortes nacionais sobre a não aplicação de imunidades para casos de reparação envolvendo forças armadas demonstram a opinio iuris sobre a questão. A prática de Estados e de suas cortes nacionais têm sido a de aplicar a imunidade nessas situações. Além disso, os julgados da Corte Europeia de Direitos Humanos têm sido no mesmo sentido. A Corte afirma que nove dos dez Estados que possuem legislações específicas sobre imunidade estabeleceram exceções para ações de indenização, mas dois desses Estados possuem, de forma expressa, a ressalva para atos cometidos por forças armadas.

     A corte confirmou que o direito costumeiro internacional não estabelece exceções à imunidade de jurisdição do Estado em casos de graves violações do DIH. Para a Corte, não existe incompatibilidade entre a regra de imunidade de jurisdição e a regra de jus cogens que proíbe o massacre de civis e o estabelecimento de trabalho escravo em situações de conflito armado. As regras de imunidade são procedimentais. Elas estabelecem a possibilidade ou não do exercício de jurisdição para determinada conduta, mas não determinam a legalidade ou ilegalidade dessa conduta. A Corte também considera que o Direito Internacional não estabelece que a imunidade possa ser levantada quando não existe nenhuma outra maneira possível de assegurar compensações por violações. Por último, a Corte afirma que o tratamento desses três argumentos em conjunto não modificaria a questão da imunidade. A concessão ou não da imunidade não é uma questão de sobrepesar as circunstâncias que justificariam o exercício da jurisdição com os interesses da proteção da imunidade para verificar qual deve prevalecer em cada caso.

     Em uma opinião dissidente composta por 27 partes, o juiz Cançado Trindade argumenta que a verdadeira questão do caso é a concretização da justiça em casos de graves violações do DIH e do Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH). Segundo o juiz, as questões de imunidades não podem ser vistas como meras questões procedimentais existentes em um vácuo e sem relação com a ação que deu origem à disputa. Não por outro motivo, durante o caso, a obrigação alemã de reparação continuou a ser mencionada apesar de a reconvenção ter sido negada pela corte. O juiz também discorre sobre a singularidade do caso em análise, pois a Alemanha reconhece sua responsabilidade pelas violações cometidas durante a Segunda Guerra. Ele afirma que a ameaça à paz e segurança internacionais é feita por crimes internacionais e não por ações de reparação. Violações graves ao DIDH e DIH que configurem crimes internacionais são anti-jurídicas. Além disso, são violações de jus cogens. Crimes internacionais não são atos de império ou atos de gestão, pois eles são delicta imperii. Dessa maneira, eles não admitem imunidades. O que precisa ser considerado pela Corte é o direito de acesso à justiça dos indivíduos, que compreende o acesso formal à justiça com a instituição do procedimento, o respeito ao devido processo legal e o julgamento e sua execução.

     O juiz Cançado Trindade recorda que os indivíduos não podem ser ignorados como sujeitos de direito internacional. É um absurdo jurídico admitir exceções à imunidade estatal em situações comerciais e em casos de reparação, mas defender a existência da imunidade em casos de crimes internacionais. A imunidade estatal não pode servir de barreira à concretização da justiça. A visão formalista e positivista de falta de conflito entre regras procedimentais e regras substantivas apenas esvazia o jus cogens de seus efeitos e consequências.

     Nesse sentido, sua posição é semelhante àquela de outro grande jurista brasileiro. Rui Barbosa já havia defendido, em oposição a uma teoria positivista dominante em determinado momento da Segunda Conferência da Paz da Haia, que o valor de um direito é dado pela possibilidade jurídica de execução do mesmo. Ao criticar as restrições impostas ao direito de nomeação de juízes à corte que se pretendia criar nessa Conferência, Rui explica que mesmo contando com o direito de nomeação, se o juiz fosse atuar apenas durante alguns anos do período total de funcionamento da corte, a nomeação estaria sendo cerceada por uma restrição na execução desse direito: “According to our eminent colleagues their project does not  contravene the equality of right between the nations, provided that all should have the right to appoint a member of the court. If such a member acts only during a part of the total number  of years, this is hardly a condition of exercise, which does not affect the right itself, for all  rights are more or less subordinated to the conditions of necessary exercise.”. De maneira semelhante, parece não ser satisfatório estabelecer os crimes internacionais como jus cogens, normas peremptórias, se sua execução será impedida pela imunidade dos Estados.

     A Corte, com a nova provocação pela Alemanha, possui a possibilidade de rever sua decisão passada e não adotar posição positivista extremada, gerando a fossilização do direito internacional em sua concepção estadocêntrica. O direito internacional deve ser voltado ao indivíduo e à comunidade internacional. Como o professor Wagner Menezes, durante palestra de abertura do Seminário de Direitos Humanos e Direito Internacional do GPDI/UFRJ, ressalta é necessário prosseguir com os estudos epistêmicos para que a teoria acolha as necessidades do DIDH, do jus cogens e do Direito Internacional das Catástrofes, ou seja, do direito internacional contemporâneo. Só assim conseguiremos caminhar para a resolução satisfatória desse caso que envolve, antes de tudo, como salientado pelo juiz Cançado Trindade, direitos dos indivíduos: “The central principles at issue here are, in my perception, the principle of humanity and the principle of human dignity. State immunity cannot, in my view, be unduly placed336 above State responsibility for international crimes and its ineluctable complement, the responsible State’s duty of reparation to the victims.”.

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