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Colunistas do Lepadia

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A GUERRA DA UCRÂNIA E A RESPONSABILIZAÇÃO INTERNACIONAL DA RÚSSIA

Fernanda Tonetto

Doutora em Direito pela Université Paris II Panthéon-Assas; Doutora e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Mestre em Integração Latino-Americana pela Universidade Federal de Santa Maria; Procuradora do Estado do Rio Grande do Sul nos Tribunais Superiores.

E-mail: fernandafigueiratonetto@gmail.com

       Desde a invasão da Ucrânia pela Rússia no início desse ano e diante das cenas de destruição que chocaram o mundo, passamos a nos perguntar quais são os instrumentos que o direito internacional possui para punir possíveis crimes cometidos no território ucraniano por ordem do Presidente russo e seus comandantes militares.

      Essa pergunta veio à tona desde o momento em que Vladimir Putin trouxe de volta o pesadelo da guerra para o solo europeu e ressuscitou as memórias do holocausto nazista e do sangrento separatismo na ex-Iugoslávia. Apesar disso, não parece que o conflito tenha data para acabar. Até agora, as tentativas de negociações diplomáticas não tiveram êxito e as sanções sofridas pela Rússia são econômicas e quase simbólicas diante de uma potência mundial que se preparou e planejou uma guerra que pode trazer muito mais ganhos do que perdas para o invasor.

       Se falharam a economia e a diplomacia, qual o papel do direito e, mais precisamente, do direito internacional na reparação dos danos e na punição dos responsáveis pelas graves violações de direitos humanos em solo ucraniano?

    Das cenas vistas e das notícias recebidas no mundo ocidental, parece evidente o cometimento de crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crime de agressão.

   O conceito desses crimes hoje é claro graças à longa construção histórica que culminou com uma pormenorizada tipificação, atualmente sedimentada no Estatuto do Tribunal Penal Internacional (https://www.icc-cpi.int/sites/default/files/Publications/Statut-de-Rome.pdf). A partir das definições ali explicitadas, seria difícil não concordar com o fato de que a Rússia vem cometendo ataques generalizados e sistemáticos contra a população civil, vem realizando violações graves às Convenções de Genebra de 1949 e que, para tanto, fez uso da força armada para violar a soberania, a integridade territorial e a independência política da Ucrânia.

      Até aqui parece fácil afirmar que a Rússia, por meio de seus agentes, cometeu crimes internacionais e merece ser punida.  Mas a pergunta é: de que forma?

    Para responder a essa pergunta, vamos analisar a possibilidade de condenação da Federação Russa em duas jurisdições internacionais: a Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH) e a Corte Internacional de Justiça (CIJ).

 No documento base da CEDH, que é a convenção europeia de direitos humanos (https://www.echr.coe.int/documents/convention_por.pdf), existe uma previsão que possibilitaria a condenação do Estado Russo especificamente por violação ao direito à vida. É o que prevê o artigo 2º da convenção, ao afirmar que o direito de qualquer pessoa à vida é protegido por lei. Considerando que uma das formas de cometimento das graves violações é por meio da prática de homicídio, tanto para os crimes de guerra quanto para os crimes contra a humanidade, a condenação da Rússia poderia advir da infração a esse dispositivo convencional.

     Porém, por mais otimista que seja o esforço argumentativo, a condenação do Estado nesse caso não seria propriamente por crime contra a humanidade ou por crimes de guerra, e muito menos por crime de agressão, mas sim por violação ao direito à vida, pura e simplesmente.

    Na Corte Europeia, esses atos estão sujeitos tão-somente a uma reparação civil traduzida em indenização e multa, mediante ação individual movida pelos sujeitos afetados contra o Estado supostamente violador.

    Partindo da análise dos elementos do crime contra a humanidade especificamente, ainda se poderia pensar em uma possibilidade de condenação do Estado Russo por desrespeito a outros direitos previstos na convenção, tais como a proibição da tortura (artigo 3º) ou a violação do direito à liberdade e segurança (artigo 5º), caso provada a prática desses atos.

Mas, apesar dessa longínqua possibilidade de enquadramento material dos atos dentro da convenção europeia de direitos humanos, a responsabilização da Rússia enfrentaria um óbice processual praticamente intransponível.

     Isso porque logo no início da guerra a Rússia foi expulsa do Conselho da Europa, o que automaticamente impede a sua sujeição à jurisdição da Corte Europeia de Direitos Humanos. Essa expulsão independe do fato de o Estado Russo denunciar a convenção europeia de direitos humanos. Com a sua saída, portanto, sujeitos que tenham seus direitos violados pelo Estado Russo não poderão peticionar perante a CEDH. Nesse caso, suas demandas não seriam sequer conhecidas pela Corte.

Esse é um daqueles casos em que uma tentativa de sanção criada pelo direito internacional traz um bônus muito maior do que o ônus para o Estado “punido”. Em outras palavras, ganhou a Rússia com sua expulsão, já que não mais se sente obrigada a respeitar a convenção europeia de direitos humanos, uma vez que não mais se sujeita à jurisdição da Corte.

      Mas, se no âmbito da Corte Europeia de Direitos Humanos a possibilidade material de punição esbarra na impossibilidade processual, na Corte Internacional de Justiça o que parece ocorrer é exatamente o contrário: se por um lado a Rússia submete-se à jurisdição da Corte, por outro lado, o documento de base para a sua responsabilização enseja interpretações.

Uma vez que é membro da ONU, o Estado Russo está sujeito à Corte Internacional de Justiça, já que esse é o órgão jurisdicional máximo das Nações Unidas. Nesse caso, a ação pode ser ajuizada diretamente pela Ucrânia contra a Rússia, como de fato foi. Aqui estamos diante de uma ação movida por um Estado contra outro Estado, diferentemente do que ocorre na CEDH em que a ação é ajuizada contra o Estado por um particular, via de regra.

     O problema é para o enquadramento da prática de crime contra a humanidade, crime de guerra ou crime de agressão seria necessário identificar uma convenção internacional firmada no âmbito das Nações Unidas sobre o assunto, da qual a Rússia seja signatária, e que, além disso, preveja a jurisdição da Corte Internacional de Justiça.

     Se o Estatuto de Roma não prevê a jurisdição da Corte Internacional de Justiça para essas violações e tampouco o faz a convenção sobre a imprescritibilidade dos crimes de guerra e crimes contra a humanidade, o único caso possível de enquadramento está na convenção internacional para a prevenção e a repressão do crime de genocídio.

Foi com base nesse documento que a Ucrânia ajuizou ação contra a Rússia perante a CIJ, em 26 de fevereiro de 2022, acusando-a de planejar atos de genocídio, uma vez que estaria matando intencionalmente pessoas de nacionalidade ucraniana e prejudicando gravemente a sua integridade física (https://www.icj-cij.org/fr/affaire/182/introduction-instance).

     No entanto, para a configuração do crime de genocídio, exige-se do violador a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso e não apenas um ataque sistemático e generalizado a uma população civil. O genocídio é um crime com muitas especificidades e o mais grave dentre os crimes internacionais.

     Em uma primeira análise, não parece possível concluir pela prática de crime de genocídio pelos militares russos em território ucraniano, pelo menos não até o presente momento. Para tanto, seria necessário comprovar, ao longo da instrução do processo, uma intenção da Rússia de exterminar um determinado grupo da face da Terra.

Apesar de a Corte ter deferido o pedido da Ucrânia de medidas conservatórias, determinando a suspensão imediata das operações militares (https://www.icj-cij.org/public/files/case-related/182/182-20220227-PRE-01-00-FR.pdf), é preciso lembrar que a jurisprudência internacional sempre foi bastante comedida no reconhecimento do genocídio, fazendo-o somente em casos mais evidentes e extremos, a exemplo do que ocorreu nas decisões do Tribunal Penal Internacional de Ruanda.

     Basta ver a decisão prolatada pela própria Corte Internacional de Justiça no julgamento dos casos Croácia versus Sérvia (https://www.icj-cij.org/public/files/case-related/118/118-20150203-JUD-01-00-FR.pdf) e Bósnia e Erzegovina versus Sérvia (https://www.icj-cij.org/public/files/case-related/91/091-20070226-JUD-01-00-FR.pdf), em que  as demandas foram rejeitadas. A CIJ entendeu pelo não cometimento de crime de genocídio durante a guerra dos Balcãs, mesmo tendo diante dos olhos o massacre de Srebrenica, o mesmo que ensejou a condenação de Radovan Karadzic no Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia (https://www.icty.org/en/case/karadzic).

     O que dizer então de um caso em que não há evidências do cometimento de crime de genocídio? A resposta é que dificilmente a Corte Internacional de Justiça acolherá o pedido da Ucrânia com base na convenção internacional para a prevenção e a punição do genocídio. Se não o fez em um caso claro de genocídio, dificilmente o fará em uma situação duvidosa.

       Em suma, mesmo diante de graves violações aos direitos humanos e a uma série de tratados internacionais, falha mais uma vez o direito internacional em seu objetivo de solucionar litígios entre Estados por uma via pacífica. O conflito da Ucrânia já dura mais de meio ano e seus desdobramentos fazem crer que existem apenas duas formas de encerrá-lo: ou pela rendição da Ucrânia ou pelo ingresso de países militarmente poderosos, com o risco de desencadear-se uma nova Guerra Mundial, em pleno século XXI.

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