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Colunistas do Lepadia

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A CONVENCIÓN CONSTITUCIONAL CHILENA COMO PRELÚDIO DO ESTADO PLURINACIONAL CHILENO E NO HORIZONTE DO REPUBLICANISMO LATINO-AMERICANO

Denise Girardon

Doutora em Direito pela Universidade do Rio dos Sinos - UNISINOS. Mestra em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul- UNIJUÍ. Especialista em Educação Ambiental pela Universidade Federal de Santa Maria - UFSM.

E-mail: dtgsjno@hotmail.com

O Chile, mesmo com a independência nacional, em 1817, prosseguiu com características colonialistas, como o domínio político oligárquico, a população formada por pobres assalariados e a base econômica agrária e minerária, voltada para o abastecimento externo. Na década de 1950, organizações populares passaram a se articular, a exemplo da Central Única dos Trabalhadores e da Frente de Ação Popular, mas foram impelidas em 1973, com o golpe militar de Augusto Pinochet sobre o governo do presidente eleito Salvador Allende.

Pinochet aprovou o texto da Constituición Política de la Republica por meio de plebiscito, em 1980, este que vigorou, em regime transitório, até 1990, quando passou a ter vigência plena. Na mesma época, e dentre os países da América Latina, o Chile adotou políticas bastante alinhadas ao Consenso de Washington, com práticas de economia aberta, liberal e macroeconômica, e a Constituição, ao manter a irresponsabilidade estatal, o protecionismo da economia privada em detrimento dos direitos e garantias sociais, sobretudo, na educação, saúde e seguridade, serviu de ferramenta para a manutenção das desigualdades.

A redemocratização chilena, em 1990, foi incapaz de conjurar a democratização política e a democratização social, pois, mesmo com autoridades eleitas, a consolidação do regime democrático esbarrava na manutenção do texto constitucional da Era Pinochet, lei orgânica da ditadura. O país entrou no século XXI com alto endividamento da população, haja vista o custo elevado dos serviços básicos privatizados, como a água, a educação superior, a saúde, e com destaque para a primeira geração a se aposentar, recebendo valores abaixo do salário-mínimo, por ser a previdência privada, administrada por Administradoras de Fundos de Pensão, que investiram os valores em aplicações financeiras.

A agudização das desigualdades históricas e a insatisfação popular gerou reivindicações, protestos e o fortalecimento de lideranças populares, conduzindo à reforma constitucional de 2005, que estabeleceu certa institucionalização democrática, mas não o suficiente para um modelo político que rompesse com o distanciamento entre os interesses sociais e os já estabelecidos. Para um modelo político legítimo, capaz de atender às demandas sociais, pautou-se a necessária superação da herança ditatorial, qual seja, a Constituição de 1980, com um novo texto, democraticamente, debatido e elaborado, refletor da soberania popular, voltado à resolução de problemas econômicos e sociais, ainda mais evidenciados pela pandemia de COVID-19.

Em outubro de 2019, uma das maiores revoltas populares contra a desigualdade social desencadeou a realização do referendo, realizado em outubro de 2020 (inicialmente, previsto para abril, mas adiado duas vezes em decorrência da pandemia). 79% das/dos chilenos decidiram por uma nova Constituição, a ser redigida por uma Convenção Constituinte, composta por cidadãos, em detrimento de uma Convenção Composta, formada de cidadãos e parlamentares. Pela primeira vez na história, o povo Chileno escolheu as/os 155 membros da Convenção, com reserva de 15 lugares para povos indígenas e em observância à paridade de homens e mulheres.

O movimento de mudanças institucionais e representativas no Chile também refletiu nas eleições presidenciais, nas quais o candidato Gabriel Borić Font, da coalizão “Aprovo Dignidade”, formada pela Frente Ampla e o Partido Comunista, derrotou José Antonio Kast, candidato de extrema-direita, e sucedeu o conservador Sebastián Piñera, assumindo o cargo em de 11 de março de 2022. A eleição de Boric foi e será um evento importante, convergente às alterações que se apresentam possíveis, a partir dos debates promovidos na Convención Constitucional.

Para além de mudanças legislativas, a nova Constituição caminha para alterar o próprio modelo de Estado, adotado pelo Chile, desde 1822, de caráter monista, com idioma, religião, cultura e arcabouço legislativo únicos. No último dia 12 de abril, a Comisión de Principios Constitucionales que, dentre os assuntos que pauta, está a forma de Estado, aprovou o texto do artigo 1º: “Chile es un Estado social y democratico de derecho. Es plurinacional, intercultural e ecológico. Se constituye como una República solidaria, su democracia es paritaria y reconoce como valores intrínsecos e irrenunciables la dignidad, la libertad, la igualdad sustantiva de los seres humanos y su relación indisoluble con la naturaleza. La protección y garantía de los derechos humanos individuales y colectivos son el fundamento del Estado y orientan toda su actividad. Es deber del Estado generar las condiciones necesarias y proveer los bienes y servicios para asegurar el igual goce de los derechos y la integración de las personas en la vida política, económica, social y cultural para su pleno desarrollo”.

O texto do artigo 1º afirma o caráter social e democrático do Estado, formado e formatado a partir da plurinacionalidade e da interculturalidade, que são princípios do Estado Plurinacional: aquele declara a formação do Chile a partir de diversos povos, igualmente soberanos, autônomos e com autodeterminação, com seus conceitos próprios de nação; este caracterizou o processo de contestação da opressão institucionalizada e conduz/conduzirá o repensar e refundar o Estado a partir de relações caracterizadas pela complementariedade, de grupos que são diferentes entre si, política, social, cultural, institucional e epistemologicamente, sitos em um espaço geográfico nacional comum. O artigo 1º define a essência do Estado, que “[...] deja de ser subsidiario (donde los privados se hacen cargo de los derechos sociales) y se transforma en un Estado social de derecho, asumiendo el deber de asegurar nuestros derechos de manera solidaria, democrática, en sintonia con la naturaleza para todas y todos”, como declarou a Comisión de Principios Constitucionales.

As novas experiências constitucionais na América Latina, que caracterizam o republicanismo latino-americano na contemporaneidade, e dentre as quais a chilena já avança, inovam/inovarão o pensamento político ao abandonarem a estrutura moderna/europeia de Estado, patriarcal e capitalista, excludente de indígenas, negros/as, mulheres e pobres. Princípios inéditos, como a plurinacionalidade e a interculturalidade, explicitamente nominados no texto aprovado do artigo 1º, acima mencionado, formam o arcabouço propositivo de um Estado enquanto espaço plural de diálogo, decisão e participação de todas as pessoas, grupos e povos, sobretudo, os, historicamente, marginalizados. A paridade entre homens e mulheres e a reserva para os povos indígenas são exemplos de deliberações preliminares, mas elementares para viabilizar a ocupação democrática dos espaços de poder, e, por decorrência, fornecem condições para que as tomadas de decisões atendam ao interesse público.

A condução da coisa pública voltada para interesses privados, marcada por privatizações, precarização de bens e serviços, e pautada na econômica voltada aos interesses estrangeiros, está sendo, solidamente, contestada por setores populares, após décadas de organização, movimentação e resistência. O espaço de diálogo para a refundação do Chile está aberto e é disputado por inúmeros grupos, de origens e interesses diversos, para além dos que, tradicionalmente, o ocuparam. Espera-se o cuidado com o que é de todos/as prevaleça sobre os retrógrados interesses neoliberais, e que os “nuevos derechos” estejam no rol da vindoura Constituição.

A Convención Constitucional já é um marco no constitucionalismo latino-americano, sobretudo, por contestar os resquícios da colonialidade do poder, esta que, como já advertiu Walter Mignolo, é permanente e contínua. É prudente apontar a arrefecida defesa da manutenção da estrutura estabelecida, pelos grupos hegemônicos que a ocupam, mas é fato que os debates constituintes avançam, de forma inédita, para, além da superação da Era Pinochet, alterar a essência do Estado, aproximando-o de sua realidade social e convergindo com as premissas republicanas, ao mesmo tempo que as ressignifica desde o Sul.

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