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Colunistas do Lepadia

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A BÉLGICA INVESTE EM DETENÇÃO NO LUGAR DE ACOLHIMENTO: UMA POLÍTICA MIGRATÓRIA CENTRADA NOS INTERESSES DO ESTADO E COMPROMETENDO DIREITOS HUMANOS

Daniele Gomes de Moura

Graduada em direito pelo CEUMA, Maranhão. Mestre em Direito Público pela Universidade Estácio de Sã. Mestre em Direito civil e penal pela Université Libre de Bruxelles (ULB). Mestranda em direitos da criança e do adolescente pela Université Libre de Bruxelles (ULB).

E-mail: danielegdemoura@icloud.com

Nos últimos dez anos, a Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH) de forma reiterada vêm condenando o Estado da Bélgica por adotar uma política migratória de encarceramento de migrantes em situação irregular, inclusive menores desacompanhados ou família com filhos menores. Até outubro de 2008, os menores estrangeiros eram detidos em centros fechados e estavam sujeitos ao regime geral de detenção para adultos.

Importante destacar que, a detenção de crianças em decorrência de seu status migratório consiste numa violação do direito internacional. Essa violação é multifacetada e começa com a própria detenção, independentemente de suas condições. Como uma criança é vulnerável, especialmente uma criança em residência precária, qualquer detenção constitui uma grave violação de seus direitos. A violação grave dos direitos da criança não pode estar de acordo com o princípio jurídico orientador nessa área: o princípio do interesse superior da criança.

Neste sentido, a jurisprudência da CEDH oferta prioridade ao melhor interesse da criança. Ao avaliar esse melhor interesse, o Tribunal parte sempre da presunção de que a situação extremamente vulnerável das crianças é decisiva e prevalece sobre a condição de estrangeiro em situação irregular.

A Bélgica vem recebendo condenações por tratamento degradante e desumano, de acordo com o artigo 3º da Convenção Europeia sobre Direitos Humanos. As crianças eram mantidas em condições de detenção inadequadas e também, pela falta de conexão entre a razão e o regime da detenção, inclusive inexistia no sistema jurídico belga, previsão de detenção de crianças. Desta forma, o Estado belga foi obrigado a pôr um fim a essa prática.

Porém, em maio de 2011, a questão da detenção de crianças migrantes retornou à tona através das notícias de construção de unidades familiares fechadas no centro de detenção para migrantes, conhecido como 127bis, localizado ao lado do aeroporto internacional de Bruxelas.

Para tanto, promulgaram a lei de 16 de novembro de 2011 que alterou a Lei dos Estrangeiros, ressuscitando a detenção de famílias com filhos menores, de acordo com a Diretiva “regresso” de 2008/115/CE. O procedimento foi regulamentado, através do Decreto Real de 2 de julho de 2018, que estabeleceu o regime e as regras de funcionamento das casas familiares fechadas, publicado em 1 de agosto de 2018.

O artigo 74/9 da lei de 15 de dezembro de 1980 constitui a base legal para a detenção de menores acompanhados.  Segundo eles, a intenção do legislador era de evitar a detenção de crianças menores, motivo pelo qual o caput do artigo começa dizendo que seria proibido a detenção de crianças, porém, em circunstâncias excepcionais, seria possível uma alternativa. Ou seja, famílias com filhos menores ainda poderiam ser detidas, por um período limitado de tempo e em condições adaptadas às suas necessidades.

O artigo de lei distinguiu duas categorias de famílias; de um lado, famílias que residem ilegalmente (§1 e §3) no território e, por outro lado, famílias que chegam à fronteira sem os documentos necessários para entrar no território (§2).  No primeiro caso, a família pode, em princípio, permanecer em uma casa para organizar seu retorno, no âmbito de um acordo celebrado com o Serviço de Estrangeiros. Se o retorno for impossível, um local de residência ("casa de retorno") será então atribuído à família. Se a família não cooperar no retorno efetivo e se medidas menos restritivas não puderem ser aplicadas efetivamente, elas poderão ser mantidas em um centro fechado por um período limitado de tempo.

Neste sentido, no período da divulgação da ampliação e da manutenção dos centros fechados, o secretário de Estado, defendeu a ideia de que, os centros fechados foram projetados para deter criminosos e expulsá-los do Estado. Não mencionou o fato que famílias e seus filhos menores também estavam sendo detidos no mesmo local, em decorrência do não preenchimento dos requisitos para obterem uma autorização de residência. E que, requerentes de asilo, que chegavam à Bélgica pelo aeroporto, também eram encaminhados para o centro fechado. A categorização dos indivíduos e a comunicação do secretario acabaram por difundir uma visão criminalizadora dos migrantes em geral e dos residentes ilegais em particular.

Destacamos que, três dias após a entrada em vigor do Decreto Real, em 14 de agosto de 2018, a primeira família foi detida. Era uma mãe e quatro crianças, entre eles um bebe.  E, até o dia 15 de março de 2019, nove famílias e vinte e duas crianças foram mantidas no centro 127bis. O período mais longo foi da primeira família, detida inclusive duas vezes, totalizando 54 dias. Lembrado que as instalações do 127bis foram construídas ao lado do maior aeroporto de Bruxelas.

Estas questões foram encaminhadas para o Conselho de Estado belga, órgão responsável por julgar as medidas administrativas e realizar o controle de legalidade dos atos administrativos. O CE considerou que, apesar das declarações do Governo e de todas as tentativas de adaptação das instalações, o centro 127bis não permite proteger as crianças da poluição sonora e, muito menos, resguarda sua vida privada e familiar. Motivo pelo qual decidiram por suspenderem a aplicação do Decreto Real para casos de detenção de famílias acompanhadas de menores.

Outra situação preocupante ocorreu durante o ano de 2020-2021. Quando limitaram o número de recebimento de pedidos de asilo. Por este motivo, o Tribunal, em novembro de 2021, pronunciou nova condenação para o Estado Belga, desta vez em razão da violação do direito de asilo e do direito de acolhimento, pois os migrantes, por várias semanas e durante o período invernal, não conseguiram registrar seus pedidos de proteção, sendo deixados nas ruas da cidade a sua própria sorte. Na decisão o Tribunal afirmou que o Estado belga falhou em suas obrigações e agiu de forma ilegal quando restringiu os direitos de asilo.

O Estado alegou que a rede de acolhimento estava saturada, motivo pelo qual restringiu o número de pedidos ao número de vagas disponíveis. Além do que, o Estado passava por fortes crises decorrentes dos alagamentos de algumas cidades e estava sofrendo os efeitos deixados pela pandemia do Covid-19.

Neste sentido a Corte rejeitou os argumentos acima, alegando que, circunstâncias externas não justificariam a falta de previsibilidade do Governo relacionados aos locais de acolhimento, além do que, as inundações tinham ocorrido em julho e a pandemia já durava dois anos, e a crescente demanda dos pedidos de asilo são inerentes da migração. Ou seja, não havia motivos para o Estado apoiar-se nos argumentos com objetivo de justificar surpresa ou falta de tempo para compensar a adoção de medidas satisfatórias para solucionar os problemas. 

A Corte lembrou que o Estado tem obrigação de resultado, logo devendo encontrar outras soluções para satisfazer as necessidades básicas das pessoas em situação de vulnerabilidade. Determinando que, o Estado belga precisa fornecer estruturas adequadas e suficientes para atender ao aumento do número de pedidos que, como tal, não são extraordinários e são recorrentes. Que o Estado não pode apenas procurar soluções, mas deve encontrá-las.

O Tribunal reconheceu que, esta situação se repete ano a ano, significando que a o órgão responsável pela rede de acolhimento, o Fedasil não estaria cumprindo com sua missão legal e a obrigação internacional de garantir o direito ao acolhimento do migrante. Especialmente, em razão, do número de pedidos de proteção que não diminui e sem nenhuma proposta de solução estrutural. Relatou que, num futuro próximo, seria receoso a adoção de medidas que impeçam as pessoas de requerer asilo, logo privadas de acolhimento.

Até o presente momento, apesar das condenações, a politica migratória da Bélgica concentra-se na adoção de mecanismos e estratégias que inviabilizam o direito de obter autorização de residência aos migrantes, irregulares ou indocumentados. E, as poucas modificações legais, quando ocorrem, acontecem em razão da pressão social. Demonstrando que as políticas migratórias, construídas na lógica dos interesses do Estado, estão sendo modificadas a medida que reagem as condenações, porém comprometendo os direitos humanos.

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